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28 de novembro de 2008


Há o luzeiro que ao longe avisto e não me faz sorrir.

Está no meu caminho, sim, mas não me sossega,
não me alumia as trevas do porvir e sim as do caminho já percorrido.

Se o vejo é porque estou parada e a olhar para trás.

Assim que decidir continuar terei de rasgar outras e desconhecidas trevas escuríssimas que começam no meu rosto e se estendem para diante.

© Fata Morgana

Imagem: Liliana Sanches

21 de novembro de 2008


Desconheço o autor da imagem

Os dias passaram. Muitos dias. Não sei se somaram semanas, meses, ou mesmo anos. Isso nunca me interessou, o nome dos dias que se agrupam nunca me disse nada. Afinal o tempo é mesmo relativo, e a ideia que se faz de uma semana é tão completamente vazia... Nunca vivi segundo essas contagens.

Junto dele, solitária, aproximei-me da árvore-do-pão e alimentei-me de toda a substância que colhi. Todas as noites punha a mesa e jantávamos, felizes, trocávamos eus numa atmosfera de outro mundo. Olhávamo-nos, riamos e conversávamos, sintonizados nas coisas desse outro mundo, que às vezes também nos calavam. Bebíamos o vinho dos deuses e comíamos as iguarias que eu fazia conforme os anjos diziam que as fizesse, e eu quase não provava. Estava saciada. Mas ele vinha faminto e era uma delícia vê-lo comer com grandes garfadas.
Aquela casa tornou-se a minha. Nunca soube ter casas e geri-las mas creio que o fiz como não me sabia capaz de fazer.

Ele ia e vinha, e percorria as ruas onde antes eu o seguira como uma cega, cheia de outros sentidos muito mais apurados do que a visão do olhar...
Quando ele não estava em casa, eu ficava horas na biblioteca - que afinal não era gémea da minha, era mais como uma irmã parecida mas muito mais crescida, mais sábia e completa. Esperava-o e sentia-me um pouco perplexa com tudo aquilo, um pouco estranha. Depois recebia-o e era transportada para os livros, que ele trazia sempre, para as histórias que me contava... e eu encorajava-o a contá-las. Era o melhor contador de histórias que jamais ouvira. Quase me adormecia os medos no embalo dos sonhos que criava para mim. Deixava-me pronta para o amar.
As noites passavam depressa demais, nós misturados, e a casa, cúmplice, aceitando-me como alguém que devia ter chegado há muito tempo mas finalmente estava ali, tão tarde. Todos os horrores de tantos anos, talvez tivessem sido desnecessários, se eu tivesse chegado mais cedo, mas não havia repreensões. Talvez porque eu estava tão exausta como o encontrara a ele, e a demora causara dano aos dois. Tínhamos de aprender a rasgarmo-nos, um e outro. Um ao outro.

Entretanto passavam-se os meus dias, que eram demasiadamente longos. As idas à mercearia, escolher fruta, legumes, queijo, vinho. O jornal. Um passeio no jardim. Isso era bom.
Mas depois regressava à biblioteca, sentava-me numa almofada a ler e nem sempre conseguia concentrar-me. Havia o medo, palpável. Era como um terceiro habitante naquela casa, e conhecia o poço escuro dele. Eu também tinha um poço escuro, meu. Perguntava a mim mesma se ainda seríamos capazes de nos debruçarmos nesses buracos negros cheios de monstros e seres límbicos, e sabia que era fundamental que o fizéssemos, para podermos ser um. Termos alguns monstros comuns, defendermo-nos dos perigos que nos ameaçassem, sem nenhum de nós estar ignorante de que existiam. Aceitar o que não pudesse ser mudado; expulsar os demónios que soubéssemos que podíamos vencer juntos. Sabia que tinha de ser assim, mas não gostava nada de falar dessas coisas dolorosas, porque ambos as queríamos esquecer.
Estes eram os dias... Sim, os dias deixavam-me muito cansada de pensar em tudo isto.

Mas depois ele chegava, novamente. Havia aquele abraço impossível de dizer; ele regressava sempre a casa como se viesse de muito longe cheio de saudades minhas, e dissolvia o penedo frio que cada dia tinha deixado no meu peito... e eu ficava silenciosa, nunca queria estragar o momento. E não me arrependia. Até ao dia seguinte...

© Fata Morgana

17 de novembro de 2008


Imagem de Leah

Sou quieta e aparentemente tranquila. Os vulcões e as tempestades de neve, vivo-os sem pestanejar, enquanto penso - ah, isto é tão meu, ainda e sempre! Mas depois lembro-me que já existiam muito antes de mim... Não me pertencem. Sou eu que lhes pertenço, a atracção reside em mim, não neles. E é fatídica.
Sou um fogo que se pode tocar sem se ficar carbonizado, um gelo que se pode sentir sem se morrer de frio, porque é a mim que queima e gela.

Gostava de possuir uma labareda que fosse, agarrar nas mãos tão brancas um pequeno cristal gelado, já que lhes sou tão pertença.
Andam sempre em mim as fogueiras e os frios porque os entendo; caminho sobre as brasas e as neves porque sou sua irmã, filha ilegítima de um insuspeitado encontro de Prometeu com Skaoi, de que nunca, nunca mais se falou, e só restei eu... sempre tão silenciosa.

Inquebrantável, afasto-me no meu trenó, recolho ao meu castelo glacial, como a Rainha das Neves. Mas tenho um coração de fogo, e esta mistura é que produz em mim estados tão funestos.
Longe de tudo e todos, deixo-me então derreter e, completamente liquefeita, quase evaporada, faço-me renascer pelo frio, num ciclo que não há meio de se interromper, já que apenas eu conheço. E eu oculto.
E Kay. Kay nunca existiu. Ou talvez sim... Havia uma palavra, creio que era "Eternidade". E também recordo vagamente um nome: Gerda.

© Fata Morgana

10 de novembro de 2008


Imagem de um teste do Quizilla

A castelã solitária, por méritos do seu cavaleiro preferido, vira-se obrigada a organizar um grande jantar de cerimónia. Não gostava de ver o castelo cheio de gente, preferia o eco dos seus passos nas paredes cujas pedras lhe devolviam amores e coisas suas, ou conversar com o garboso cavaleiro, com palavras serenas, entremeadas de silêncios cheios de sortilégios...
Mas, por ele, esmerou-se. Vestiu-se de anfitriã, escolheu a melhor baixela e os copos e talheres mais bonitos, bem como a toalha e os guardanapos mais delicados.

O jantar estava uma delícia. Depois de uma saborosa sopa de nabiças, o javali assado parecia uma iguaria dos deuses. O vinho, aromático, era ideal para fazer escorrer algo de mágico e subtil pelas gargantas dos convidados. Tudo estava certo para produzir um conforto que, apesar de tantos cuidados, não havia.
O que havia era um mal-estar incompreensível. Os presentes entreolhavam-se, uns com regozijo, outros com rancor. As conversas tornavam-se paradas, como se de repente as palavras estivessem a afundar-se num pântano invisível e só os ditos irónicos e despropositados se mantinham à superfície.
Alguns convidados pareciam estupidamente contentes com uma coisa qualquer invisível que enfurecia os outros. Depois instalava-se um silêncio carregado e reinava o tinir dos talheres sob muitas trocas de olhares divertidos ou hostis.

A castelã sabia que tinha feito tudo certo e estava um pouco distraída a saborear o jantar. Sabia que os convidados não estavam ali por causa dela e não esperavam que participasse demasiado. Pensou, vagamente, que eram um pouco estranhos... mas achava normal ser-se estranho. Ela também era estranha.
De repente, durante o gesto de levar aos lábios o copo de vinho, viu claramente através das pestanas baixas, e percebeu que não se tratava de estranheza, mas de outra coisa qualquer, violenta e negativa. Perturbada, passeou o olhar pelas pessoas à volta da mesa, enquanto, com a sua mão esquerda, pousava o copo. O seu vizinho, por sua vez, olhava-a com uma expressão que parecia mesmo de ressentimento. E ela de repente percebeu que se enganara.
- Oh, desculpe, eu usei o seu copo... Eu sou canhota, pus a mesa direita por vossa causa, mas...
- Canhota? - gritaram todos em uníssono.
Ela sentiu no ar um reboliço de vibrações contraditórias cruzando-se, tornando ufanos os que antes estavam zangados e raivosamente desapontados os que se tinham mostrado contentes.
- Sim, canhota - confirmou sem qualquer pejo, enquanto notava que sentara os convidados seguindo a devida hierarquia, mas ao contrário. O que deveria estar à sua direita estava à sua esquerda, e assim sucessivamente. Divertida, acrescentou: a minha mão principal é a esquerda.
Depois desta revelação, todos olharam a castelã e o cavaleiro festejado. Fizeram contas de cabeça, descobrindo-se sentados exactamente nos lugares que lhes pertenciam, uma vez que a dona do castelo era canhota.

O resto do jantar foi uma conversa sinfónica, de temas maiores e triunfantes a modular aos relativos menores, carregados de amargos venenos.
Ela também conversou bastante mais, uma melodia que ia improvisando e ao mesmo tempo vinha de muito fundo dentro de si. Na realidade nem sequer estava ali, tinha recolhido ao seu inaparente estrabismo. Felizmente também era estrábica!

© Fata Morgana

3 de novembro de 2008



Ontem foi um dia de estar ausente de tudo. De mim, também. Um dia de lágrimas secas no fogo dos olhos abertos, de querer fechá-los e não poder.
As flores que depositei em lugares onde não fui, também elas eram murchas ainda antes que as pousasse, mas não me importei. Levavam sentimentos vivos para onde os corpos vivos não têm qualquer préstimo, por isso é que murcharam. Só a essência lhes ficou intacta e seguiu o destino que lhe dei, à procura de quem já não posso abraçar e a quem nunca deixarei de dizer - perdoa-me, sempre gostei tanto de ti, tu sabes.

E dos lábios secos com que murmurei, assim foi a verdade das palavras a evolar-se sem deixar em mim qualquer alívio.

© Fata Morgana