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3 de fevereiro de 2009


Pintura de Nancy Farmer

Que a Bela era uma princesa linda como os amores (esta expressão perdeu a actualidade...) todos sabemos. Que era inteligente e prendada, também, porque algumas Fadas boas estiveram no seu baptizado e não foram avaras, fadaram-na mesmo, com os seus dons. Depois, sabemos que dormiu cem anos por causa de uma Fada má que entrou na festa sem convite, oferecendo-lhe o sono da morte quando completasse quinze anos. Não havia talão de troca mas, por sorte, uma Fada que ainda não tinha oferecido nada conseguiu trocar o presente feio por outro melhor.
Sobre a índole da Bela, não temos dúvidas: era boa. A respeito do seu comportamento não hesitamos: portava-se bem.
Mas ignoramos a sua verdadeira natureza e que tipo de amor-de-menina seria, pois nada transparece relativamente ao seu feitio (aqui, eu diria feitiozinho). Não sabemos se lhe foi fácil a perfeição ou se travava batalhas com um espírito voluntarioso que lhe fosse inato.
Nada nos foi dito para lá das qualidades basilares de uma boa-menina. Desconhecemos completamente a personalidade da Bela, e o mais natural é que tivesse vários traços e propensões por fadar, pois só um grosso batalhão de Fadas boas poderia providenciar tudo logo ali no baptizado.
Portanto não fazemos ideia se a Bela era oportuna e espirituosa ou se era uma chata; se preferia andar de bibe na floresta ou sempre de vestido pelos salões; se era frágil e dócil, se viva e um bocadinho mordaz; se a Alegria recebida no berço se traduzia sonoramente, em risos, ou se era uma rapariga tranquilamente longínqua, de pensamentos ridentes... Nunca mais acabaria de enumerar as coisas que não sabemos acerca da Bela.
Poupemo-nos, ora, o que eu quero é chegar ao beijo. O beijo é que interessa, ao fim dos cem anos, pois!
Ah, deve ser uma maravilha estar a dormir muito sossegada, a dormir profundamente, aparecer um príncipe - não, não serve qualquer um, o beijo só presta se for dado por aquele que é o tal, e na história é um príncipe, talvez porque a Bela não tinha nenhum tal -, e zumba!, ferrar-nos um beijo. Bem... zumba, não... E ferrar também não...

O beijo tem de ser absoluto. Há-de trazer o enlevo assombrado de quem Vê a Beleza pura, nunca antes suspeitada. Será um beijo delicado mas forte, um beijo cheio de fome e de sede que não se quer matar jamais; um beijo de posse e desapego; um beijo... BOM! Que não se distingue dos sonhos mais lindos.

E nada me espanta, se a Bela por acaso for dorminhoca - não é defeito! -, que ela se aconchegue mais deliciosamente entre os fofos colchões e cobertores, suspire de puro deleite, e se volte para o outro lado, a dormir outros cem anos.

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