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6 de junho de 2013

Morgana de Avalon


A Morgana de Avalon regressou ao Castelo de Gore, que está cheio de pó e de teias de aranha. Andam morcegos a voar pelos corredores e aposentos - pois claro que é de noite! - mas não me assustam, pelo contrário. Eu gosto muito de morcegos, essas criaturas nocturnas e noctívagas... como eu.
Não há mais ninguém por aqui... o soalho só range sob os meus passos. Se eu parar de caminhar assim, lentamente, como quase sempre faz quem volta de longe com saudades, fica um silêncio pesado e envolvente. Conheço este silêncio que fala comigo há tanto tempo e me seguiu por onde eu tenho andado. Chamou por mim, o silêncio. E eu vim.

Depois, quando a saudade se aplacar um bocadinho, vou procurar os viajantes que costumavam passar e parar um pouco pelas Terras de Gore. Uns eram - são! - amigos; outros apenas conhecidos; outros ainda, completamente estranhos. A todos recebi sempre bem e, nas minhas curtas ausências, costumava deixar a mesa posta e quartos preparados, para nunca lhes acontecer virem tão longe e não terem nada para comer e beber, nem onde descansar. Talvez isso tenha mesmo acontecido, já que desta vez demorei tanto! Mas voltei.

Fata Morgana

15 de abril de 2010

Para o HornedWolf




Como uma espécie de sibila airosa
sábia de cerimónias
não me mexo
Na língua
uma palavra vagarosa
ecoa
como um doce sacramento

Reside no olhar o movimento
de profundeza aquática
e lonjura
Mergulhas nele
como quem se cura
de todos os cansaços,
do tormento

Num gesto calmo sempre sorridente
invento um salmo
e canto para ti

Como uma espécie de sibila airosa
sem cerimónias
digo docemente

- Agora vai. Não fiques por aqui


© Fata Morgana


Publiquei este poema no Claro Obscuro a 4 de Março de 2004 - foi quando o escrevi -, e ontem no Facebook. Hoje trago-o para aqui, a pedido de um Amigo especial que, ainda por cima faz anos. Parabéns, HornedWolf!
Claro que isto é apenas um pequeno desejo teu que posso realizar: aqui está!


3 de março de 2010


Desconheço o autor da imagem

Porque abro os olhos e o que vejo é a roda que nunca pára, fecho-os para o deserto de gelo que tenho em mim; agasalho-me. Porque abro os ouvidos e o que ouço é o ruído branco que parece não ter fim, fecho-os para a canção que me canta a alma desde criança; embalo-me. Porque abro a voz e ela não soa no vazio desoxigenado, fecho-a para entoar sozinha a tal canção, minha, de sempre - "Dorme, menina triste/ Não te lembres de acordar/ Que toda a vida consiste/ No eterno desenganar". Afundo-me.

O poço é dentro e senti-lo é muito mais forte do que vê-lo. Eu não tenho vertigens, gosto da profundidade, atrai-me o que se oculta onde não chega a luz. O meu olhar é rasgado, como de cega, e não preciso da luz.
São tão poucas as coisas que, sob a luminosidade clara dos dias enormes, me prendem o olhar. Eu fujo-lhes, como das palavras. Essas trazem espinhos e medos como nenhuma escuridão. Por isso também não ouço, também me calo, sim, passo por arredia, por vazia ou por antipática. Porém, só queria um silêncio partilhado à beira do abismo.

E gosto de muita gente, oh gosto de demasiadas pessoas, mas quase todas lançam pedras para tentar descobrir quão fundo é o poço, e dói tanto a curiosidade com que as vão atirando, cada vez maiores, como se não fosse a mim. Talvez não saibam que magoa...

Sou muito mais funda do que saliente.
Por vezes, durante o sono, sinto que vou muito longe, quase como se chegasse, e há alguém que me recebe. O meu Anjo, talvez... É pura delícia, mas volto sempre com escassos fragmentos de memória da experiência.

E não conheço muitos dos monstros que hão-de aparecer onde nunca ainda cheguei.

É por tudo isto que tenho andado calada.


© Fata Morgana


Também publicado n'O Bar do Ossian

7 de janeiro de 2010


Desconheço o autor da imagem :(

Acordou com a sensação desagradável de estar só, de que ela se tinha ido embora, e havia também a memória vaga de um sonho importante a esmorecer. Why does it grieve me so?
Ao contrário do que normalmente acontecia, não era capaz de refazer os detalhes, que cada vez mais se esfumavam, até desaparecerem por completo.

Deixou-se ficar imóvel, franzindo com força o sobrolho. Decorridos alguns minutos, virou-se devagar e ali estava ela, voltada para o outro lado. Tinha os cabelos espalhados na almofada e um ombro destapado. Sorriu levemente ao ver todos aqueles sinais pequeninos que pareciam formar constelações escuras sobre a pele muito branca, e sentiu um alívio enorme, inexplicável, pois ela acordava ao seu lado todas as manhãs. Mas a estranheza persistia, a sensação de estar só.

Estendeu a mão para o ombro nu e puxou-a, de maneira a fazê-la voltar-se. Precisava de a trazer, de a ouvir dizer - o que é isto? -, a pergunta indefinida que habitualmente balbuciava, no tom perplexo de não reconhecer ou gostar de coisa alguma do que via. Ficava com uma expressão muito triste até focar o olhar no dele. Só então começava a perceber o lado de cá, e também a sorrir.
Mas nessa manhã, quando a voltou, ela já tinha os olhos abertos.

Uns olhos infinitos, os olhos do seu amor, da rapariga que outrora o seguia pelas ruas e ele fingia não notar, para que ela nunca mais parasse de o fazer. Que o espiava um bocadinho e comprava livros iguais aos dele, e ele chegara a encomendar dois, quando eram raridades e sabia ser pouco provável que ela encontrasse um segundo exemplar. Que frequentava os seus cafés e bares, simulando acasos, tal como ele simulava atrasos, para que às vezes ela chegasse primeiro e não se adivinhasse descoberta. Tinha medo que ela deixasse de cumprir aqueles rituais que os aproximavam tanto, criando uma intimidade funda que ambos percebiam sem compreender, e era tão esquisita entre dois desconhecidos.
Ela sentia e ele sabia que tudo aquilo eram gestos de cumprir destinos... E um dia ela bateu-lhe à porta de casa e percebeu que era esperada. Sim, há tempos que a esperava! Sabia que estavam a caminhar para aquele único ser em que, juntos, se vinham tornando. Queria isso. Yes, you will be my fill.

Com o passar do tempo ela tornara-se mais silenciosa, mais contemplativa; quase invisível, quase rarefeita. Como se fosse o fantasma de si mesma. Na realidade, era uma legião de fantasmas, mas nenhum o dela. Era tão próxima, fora tão esperada... Os fantasmas dele conheceram-na imediatamente, e amaram-na. Não a largaram e apossaram-se dela, que os recebera lentamente... mas também com uma estranha avidez.
Mas nessa manhã ali estava ela, tal como fora antes de se apaixonar pelos fantasmas dele. Tão autêntica, apesar do olhar parado que o não fitava e de uma certa quietude estranha... Why do you sleep so still?

Acabou por se render, pois o combate que travava era desigual... oh, absolutamente desigual! Ela fora-se mesmo embora. Estava morta.


© Fata Morgana


O texto contém (em inglês e itálico) excertos do Poema/Canção Lady d'Arbanville, da autoria de Yusuf Islam (Cat Stevens), que passo a transcrever.
Adoro a versão dos And Also the Trees!


Lady d'Arbanville


My Lady d'Arbanville, why do you sleep so still?
I'll wake you tomorrow
And you will be my fill, yes, you will be my fill.

My Lady d'Arbanville why does it grieve me so?
But your heart seems so silent.
Why do yoy breathe so low, why do you breathe so low?

My Lady d'Arbanville you look so cold tonight.
Your lips feel like winter,
Your skin has turned to white, your skin has turned to white.

I loved you my lady, though in your grave you lie,
I'll always be with you
This rose will never die, this rose will never die.


By Yusuf Islam (Cat Stevens)

27 de novembro de 2009


The Blind Leading the Blind - Brueghel, o Velho, 1568

Vou falar de uma rapariga inacreditavelmente bela - isto, segundo a descrição perplexa de um rapazito que, ao contemplar pela primeira vez tão especial criatura, mal podia crer nos seus próprios olhos. Esta característica está muito exagerada e o destaque deve ir, inteirinho, para o tal rapazito. Na realidade, ela - a quem por conveniência vamos chamar Héloise -, apenas possui uma aparência calada e funda, muito longínqua e fora do comum, que muitas vezes causa saudade e sentimentos de perda naqueles que a vêem. Mas esses, são muito poucos.
E, no que respeita a Héloise, a beleza importa pouco. O que ela tem de especial é outra coisa, é ter no peito um coração. Um coração de verdade, que bate muito forte, que se sobressalta, que se aperta, que às vezes enlouquece e vibra. Um coração que reage a penas e alegrias, que conhece a misericórdia, o perdão, o arrependimento; que faz Héloise rir e chorar, fugir e voltar, e que às vezes também se fecha e endurece, quando ela se sente profundamente zangada ou triste. Não é uma víscera, como aquela que possuem os actuais mutantes humanos. É um coração antigo, obsoleto, uma coisa da qual hoje quase todos riem e fugiriam a sete pés se não tivessem a certeza de que não existe qualquer perigo de contágio.
Com uma coisa assim tão rara, Héloise não se parece nada com a grande maioria das outras pessoas e estas pouco se identificam com ela. Talvez por isso, ela sempre gostou de se esconder e ficar sossegada, debruçada no seu poço escuro, a afagar as sombras dos pensamentos que traz quase sempre no olhar. Claro que se sente um bocadinho só, mas não se importa muito. Custa-lhe menos suportar a solidão do que a confusão e os enredos das actuais pessoas, e de longe lhes prefere o rumorejar das árvores, as vozes dos pássaros, o lamento doce da chuva, o estrondo dos trovões. Adora animais e estes facilmente a seguem para todo o lado, coisa de que se orgulha bastante, embora não lhe importe mesmo nada o que as pessoas pensam dela.
Héloise costuma dizer que nasceu fora do seu tempo, que pensa, sente e age como uma mulher medieval. E de facto ela faria muito mais sentido entre os antigos Bretões. Ou então junto dos visigodos ou dos ostrogodos... Esta questão - onde a colocar? - põe-se em termos geográficos, não de épocas e costumes.
Porém, ela nasceu no tempo dos consumismos estapafúrdios, dos meios audio-visuais prolixamente soberanos, do hedonismo medonho. E do individualismo. Mas um individualismo sem lugar para eremitas como ela, sem lugar para a solidão boa.
Já nem sequer há povos, apenas grupelhos, entre os quais a paz só dura enquanto as conveniências de cada um não se chocam com as dos outros. Também já não se sofre, porque todos estão embotados. Uns pelas tecnologias de ponta. Outros porque são intelectuais, mas não no sentido fantástico em que o foi Abélard, e sim no de uma tendência doentia para a criação e amamentação de ludotecas pensantes. Por isso Héloise esconde-se mais do que nunca.
Sabe que estes são tempos de cegos que guiam outros cegos. E, se é quieta e silenciosa, está muito longe de ser estúpida, e detesta as abominações destes tempos que nunca serão os seus. Foi tudo isto o que o rapazito viu. E foi por isso que a achou inacreditavelmente bela!

© Fata Morgana