O branco é negro nos dias tristes, nas caminhadas solitárias em dias cinzentos, confirmava uma vez mais, aconchegando ao corpo os alvos agasalhos.
As nuvens escuras, acasteladas, tornavam mais dramática a figura, emoldurando-a, e o longo vestido quente, o casaco muito comprido, pareciam materializar os gritos de pássaros distantes, ecoar ameaças de outras paragens... ou a promessa de gelo.
As mãos, cada vez mais frias, iam-se tornando azuis, semelhantes às pedras. E o reflexo nos vidros das janelas parecia tornar-se mais esguio. Tinha um andar estranho, quase irreal, como se deslizasse, e o nevoeiro cerrado abafava o ruído dos passos. O dia parecia ter criado a silhueta tão clara e isolada, como uma miragem. Não custaria a crer que desaparecesse de repente. Mas estava ali.
Não havia ninguém por perto, parecia que a cidade estava morta. Porém, sentia-se o olhar das coisas poisado na alvura quase despudorada da forma que evoluía bem depressa, embora parecesse fazê-lo em câmara lenta e como se não cansasse. Como se não deixasse anoitecer.
As narinas frementes inalavam o ar húmido, repleto de odores mórbidos e pouco conhecidos. Diurnos. As gaivotas, podia cheirá-las, tal e qual como as escutava, embora estivessem ocultas por um espesso véu de milhares de gotas de água. O sorriso fantasmagórico, que mal descerrava os lábios azuis, parecia dizer - sim, também consigo cheirar o medo.
Pressentida, sabia das pessoas escondidas nos lugares mais recônditos das suas casas, e que por detrás das cortinas das janelas, não havia ninguém a espreitar. Não queriam ver, tementes dos sortilégios. Muito menos ousariam fitar o abismo profundo no olhar contemplativo. Palavras, estavam fora de questão. Um temor ancestral, generalizado, deixava o mundo inteiro para a mulher de branco.
Finalmente parava. Era ali. Sempre fora ali. Já não existia a floresta, os caminhos isolados rasgando o frondoso arvoredo que se descerrava um pouco, junto ao cruzeiro há muito desaparecido. Mas o lugar era o mesmo.
Sabia que alguma coisa havia de acontecer. Sempre acontecera.
A mão azul havia de aflorar muito ao de leve o ombro de alguém que, julgando estar perdido, saberia o que era perder-se realmente.
© Fata Morgana
As nuvens escuras, acasteladas, tornavam mais dramática a figura, emoldurando-a, e o longo vestido quente, o casaco muito comprido, pareciam materializar os gritos de pássaros distantes, ecoar ameaças de outras paragens... ou a promessa de gelo.
As mãos, cada vez mais frias, iam-se tornando azuis, semelhantes às pedras. E o reflexo nos vidros das janelas parecia tornar-se mais esguio. Tinha um andar estranho, quase irreal, como se deslizasse, e o nevoeiro cerrado abafava o ruído dos passos. O dia parecia ter criado a silhueta tão clara e isolada, como uma miragem. Não custaria a crer que desaparecesse de repente. Mas estava ali.
Não havia ninguém por perto, parecia que a cidade estava morta. Porém, sentia-se o olhar das coisas poisado na alvura quase despudorada da forma que evoluía bem depressa, embora parecesse fazê-lo em câmara lenta e como se não cansasse. Como se não deixasse anoitecer.
As narinas frementes inalavam o ar húmido, repleto de odores mórbidos e pouco conhecidos. Diurnos. As gaivotas, podia cheirá-las, tal e qual como as escutava, embora estivessem ocultas por um espesso véu de milhares de gotas de água. O sorriso fantasmagórico, que mal descerrava os lábios azuis, parecia dizer - sim, também consigo cheirar o medo.
Pressentida, sabia das pessoas escondidas nos lugares mais recônditos das suas casas, e que por detrás das cortinas das janelas, não havia ninguém a espreitar. Não queriam ver, tementes dos sortilégios. Muito menos ousariam fitar o abismo profundo no olhar contemplativo. Palavras, estavam fora de questão. Um temor ancestral, generalizado, deixava o mundo inteiro para a mulher de branco.
Finalmente parava. Era ali. Sempre fora ali. Já não existia a floresta, os caminhos isolados rasgando o frondoso arvoredo que se descerrava um pouco, junto ao cruzeiro há muito desaparecido. Mas o lugar era o mesmo.
Sabia que alguma coisa havia de acontecer. Sempre acontecera.
A mão azul havia de aflorar muito ao de leve o ombro de alguém que, julgando estar perdido, saberia o que era perder-se realmente.
© Fata Morgana
31 comentários:
perder-se na mulher de branco? ou perder-se para um outro mundo, conduzido pela mão azul da mulher de branco?
belo texto, morgana.
iniciei com esta leitura a minha manhã e o meu regresso de outras paisagens, agrestes, às quais tenho de voltar sempre, para beber a água de fontes antigas.
beijo
A mulher de branco está, ela própria, perdida. Para sempre. (Re)conhecer os lugares e saber "os caminhos" são coisas que não a impedem de estar, essencialmente, perdida.
Aquele que se julgava perdido é exactamente o contrário dela. O não-saber-muito-bem-o-caminho é o seu pequeno problema, passageiro e circunstancial. Até sentir uma mão azul poisada levemente no seu ombro, e se voltar... E encontrar o abismo no olhar-limiar que lhe mostra o lado fundo das coisas. Sim, a mão azul conduz a um outro mundo.
Que bom teres hoje partido daqui :)
Beijo grande.
gostei do © Fata Morgana ;)
gosto deste noise de fundo :)
bjs.
Ruela,
O noise de fundo... O meu vento e os meus lobos, a uivar!
Ainda bem que gostas.
Todo este ambiente e escrita é muito Fata Morgana, pois. ;)
Beijo*
~~~~~~~~~~...
Peugadas deliciadas :)
Kisss...
O branco é a medida do artista. O convite à criação.
O branco é o remédio e o descanso ao choque dos vermelhos sangues, da paixão cruel dos púrpuras, da esquizofrenia do amarelo, da indecisão dos cinzentos, da tortura do negro, da tristeza dos azuis.
É o luto das rainhas.
A leveza de nuvens.
O frescor de lírios.
A pureza da neve.
A doçura do açúcar.
A maciez da espuma.
Arquétipo da paz.
Quando translúcido, é diamante sem jaça e contém um arco-íris em seu interior, à espera de um sol que o libere.
A tela em branco não é ausência, nem o zero absoluto.
É a preparação, antes de mudanças necessárias.
Beijos.
PS: não quis falar da mulher de branco...LOL!
Mas tu sabes que sou uma morcega marada.
Venho deixar um comentário pequenino, a dizer que li o texto e gostei muito do texto. Escreves muito bem :).
Dark Kisses.
Witch,
às vezes gostava que fosses Witch Loquaz em vez de Contemplativa :)))
Mas sei tão bem como é...
Dark kiss
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Bat,
não quiseste e pronto, não falaste!
Eu gostava que a morcega marada falasse precisamente da mulher de branco.
Beijos para ti.
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Nanashi,
não sabes como gostei tanto de te ver por cá! Mesmo muito.
O teu comentário não é pequenino, é apenas curto ;)
Obrigada e um beijo grande.
por ventura assim surge e refulge, aquela que a catástrofe do tempo aflora sem tomar... beijo, Fata
Se não sumires de 4 de julho a 8 de setembro como fizeste no ano passado, eu falo da mulher de branco.:)
Beijos
Vítor Mácula,
a falar assim, lembras um anjo do apocalipse... :)
Fiquei na dúvida se o tempo que mencionas é o tempo-época, o tempo-duração, ou, eventualmente, a conjugação de ambos... Pois, não sei bem como leste! O que te tocou foi a mulher de branco em plena cidade, nos mesmos lugares de sempre, ainda que muito mudados?, ou a mulher de branco ainda ser igual por dentro e nada se ter alterado ainda em tamanha maldição?
Adorei o "por ventura" (subtilezas linguísticas).
Que bom teres aparecido aqui, acho que pela primeira vez, pois no meu outro Castelo é que passavas de vez em quando, e ele lá continua, sombrio e altaneiro. Bem-vindo, pois. Passarás a ter talher na mesa também aqui ;)
Beijo
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Biazinha, minha feiticeirinha marota!
Eu não vou sumir - garanto-te.
A senhorita escreve com esta garantia ou vou mesmo ter de esperar... até Setembro?!?!?!
Beijos muitos!
ah claro, o apocalipse é o segredo do tempo, a sua dinâmica constituinte; e o tempo época é a esplendorosa ruína, esse sinal de futuro. ou seja, tocou-me isso tudo, e por ventura e sobre tudo ela ser “de branco” ;)
primeira vez a comentar, corrija-se.
quanto à mesa, passarei então a trazer rosas e vinho ;)
PS: rosas em vasos, vivas e enraízadas, claro.
Querida Fata
O teu mundo... que não deixa de ser algo que vislumbramos desde a nossa poltrona, assitindo à magia das tuas imagens... a mão não era azul, a energia não era escura, o teu semblante não mostrava surpresa, sabias que assim seria...
Um beijo
Daniel
Bela Fada,
sei que sabes :)
Padeço dessa ambiguidade...às vezes loquaz, agora contemplativa...
E sim, poderia falar do muito que as tuas palavras me inspiram...do banco que às vezes é negro, da caminhada solitária, do pressentir, do imutável...
Mas, também desta vez, "as palavras estão fora de questão"... Elas ficam maravilhosas contigo! :)))
Kisssss...
Ups...leia-se branco onde está banco, claro!*
Se não sumires tanto tempo falo da mulher de branco, da mulher de preto, da mulher de rosa(cor preferida da Frankie)...de roxo, abóbora, vermelho...:)
...e eu da mulher arco-íris!:P
Não sei que te diga, Vítor... O tempo é subjectivo; o apocalipse "também" (eu acho). Daí que os sinta mais como sinais dos futuros, talvez, e não do futuro.
As rosas - elas próprias lembram-me apocalipses... - vivas ou mortas, e o vinho, serão apreciados por aqui ;))
Dark kiss*
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Daniel,
tu lá sabes que efeitos tem o teu sofá :)))
Tens a certeza que não é uma das "maravilhas" da robótica? (Eu não sou a mulher de branco.... Sou mais a de preto....)
Um beijo grande.
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Witch,
eu gosto das duas, da loquaz e da contemplativa. Ambas são expressivas!
Dark kiss
PS. Eu li "branco"! Levei um pedaço para perceber a tua emenda, mesmo à segunda não li "banco" :))
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Akasha,
não tencionava sumir mas, com essa tua promessa, ui, não sumo de certeza! E, já agora, o sumo pode ser de abóbora :P
(Eu sei que a Frankie adora cor-de-rosa ;)
Beijos,bruxinha.
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Olá Exterminador!
tu só me preocupas quando falas VERMELHO! (Como os semáforos...)*
as tuas palavras nunca estão fora de questão, pelo contrário, estão dentro!
e vou pelos corredores azuis...
caminhos inconquistáveis, talvez, apenas um tumulto íntimo de mãos dadas com a serenidade...
encontrei-te hoje!!
teu beijo
Olá Edu :)
As palavras que não estão fora de questão são, quase sempre, silêncio.
O meu tumulto íntimo anda sempre de mãos dadas com a minha imensa serenidade :)
Encontramo-nos nestas singularidades que não deveriam sê-lo.
Beijo grande!
Huuuum… pois. Mas o subjectivo/objectivo é uma dinâmica da reflexão viva, ou uma dialéctica, se preferires: um põe sempre o outro; quanto ao tempo, preenche ambos, e por isso não morremos apenas quando decidimos. Pelo menos à primeira vista ;) E é este o aspecto apocalíptico pessoal, primeiramente visível também. Nesse sentido, o apocalíptico, mesmo o profético, é algo de presente, que os futuros a Deus pertencem LOL beijo
PS: “sinal” é como um desejo ou propensão: vem de fora, de dentro, de baixo e de cima ;) nada há que não seja passível de ser significativo
"Nem o Sol nem a Lua podem refletir-se claramente na água lamacenta. Assim a alma universal não pode realizar-se perfeitamente em nós, enquanto não afastarmos o véu da ilusão, isto é, enquanto perdura o sentimento do eu e do meu."
(Ramakrishna)
Adorei o texto.Abraços
Gothicum
we know what place are you talking about.
*
Olá Morgana,
Regressar às tuas terras é sempre um prazer especial. O texto é belo e não parece por de parte uma continuação.. mas não que faça falta.
Esta fatalidade é um encanto e, num tom mais pessoal, é bom perdermo-nos em outas imagens, que não as próprias!
Espero um dia poder ler-te, também, no papel.
Beijo,
Gotik
Descreves tão bem mundos que não conheço (ou não quero?) que até me arrepio.
Mas, no fundo, andamos todos às apalpadelas... neste ou naquele caminho que pensamos conhecer...
Querida amiga, tem um bom fim de semana.
Beijo.
Vítor Mácula,
a reflexão, sim, viva, e com muitas faces. Um namorado triste não reflecte como um namorado feliz a respeito da amada, ainda que o relógio diga que o tempo decorrido nas respectivas reflexões dos mancebos tenha sido exactamente o mesmo. Se postas em música, em trechos iguais, um interpretá-la-ia como um adagio pesante, enquanto o outro talvez escolhesse um allegretto ou mesmo um allegro, quem sabe até vivace.
Os sinais a que presto atenção (não por qualquer escolha consciente ou juízo de valores, mas por ser abstracta) parecem sempre vindos de fora, de baixo e de cima e fico perplexa de os ver surgir como se fossem externos, porque estão sempre dentro de mim, por vezes como se já me perseguissem muito antes de haver mim.
Beijinho grande.
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Gothicum,
o eu e o meu têm má fama, que acho injustificada. Não me parece que possamos servir de nada ao Universo se não cultivarmos o eu. Com amor. Depois a qualidade desse amor é que mantém a água límpida ou a torna lamacenta. Digo eu, claro.
Gostei de te ver por estas terras!
Um abraço.
____________________________
0.05,
:)
I believe you do...
Dark kiss
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Gotik Raal,
que bom, parece que voltaste mesmo, não só às minhas terras mas também às tuas! :)
Não escreverei a continuação. Se prosseguisse neste tema, faria algo que me parece mais profundo e revelador: escreveria o princípio!
Dark kiss
____________________________
Nilson,
Claro que conheces e não querias... mas já é tarde. Estes mundos, como lhes chamas, não são visíveis a qualquer olhar e quando te perguntas - "ou não quero?" - dizes-me claramente que os vês, ou a pergunta não teria qualquer sentido.
Que bom teres aparecido. Vê se não ficas outros 300 anos sem tornar.
Um beijo amigo.
Eu devo estar louca...jurava que tinha um post que não li.
Devo ter sonhado.
Beijos.
...dizer que gosto dos teus textos, é pouco
...beijinho
Olá Bat.
Não retirei post algum, portanto sonhaste mesmo! :)
Beijos*
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Quim!
eu fico contente por esse teu pouco, como lhe chamaste. Lembro-me muito bem de que não é qualquer frasezita que te agrada :)
Beijinho*
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