The Blind Leading the Blind - Brueghel, o Velho, 1568
© Fata Morgana
Vou falar de uma rapariga inacreditavelmente bela - isto, segundo a descrição perplexa de um rapazito que, ao contemplar pela primeira vez tão especial criatura, mal podia crer nos seus próprios olhos. Esta característica está muito exagerada e o destaque deve ir, inteirinho, para o tal rapazito. Na realidade, ela - a quem por conveniência vamos chamar Héloise -, apenas possui uma aparência calada e funda, muito longínqua e fora do comum, que muitas vezes causa saudade e sentimentos de perda naqueles que a vêem. Mas esses, são muito poucos.
E, no que respeita a Héloise, a beleza importa pouco. O que ela tem de especial é outra coisa, é ter no peito um coração. Um coração de verdade, que bate muito forte, que se sobressalta, que se aperta, que às vezes enlouquece e vibra. Um coração que reage a penas e alegrias, que conhece a misericórdia, o perdão, o arrependimento; que faz Héloise rir e chorar, fugir e voltar, e que às vezes também se fecha e endurece, quando ela se sente profundamente zangada ou triste. Não é uma víscera, como aquela que possuem os actuais mutantes humanos. É um coração antigo, obsoleto, uma coisa da qual hoje quase todos riem e fugiriam a sete pés se não tivessem a certeza de que não existe qualquer perigo de contágio.
Com uma coisa assim tão rara, Héloise não se parece nada com a grande maioria das outras pessoas e estas pouco se identificam com ela. Talvez por isso, ela sempre gostou de se esconder e ficar sossegada, debruçada no seu poço escuro, a afagar as sombras dos pensamentos que traz quase sempre no olhar. Claro que se sente um bocadinho só, mas não se importa muito. Custa-lhe menos suportar a solidão do que a confusão e os enredos das actuais pessoas, e de longe lhes prefere o rumorejar das árvores, as vozes dos pássaros, o lamento doce da chuva, o estrondo dos trovões. Adora animais e estes facilmente a seguem para todo o lado, coisa de que se orgulha bastante, embora não lhe importe mesmo nada o que as pessoas pensam dela.
Héloise costuma dizer que nasceu fora do seu tempo, que pensa, sente e age como uma mulher medieval. E de facto ela faria muito mais sentido entre os antigos Bretões. Ou então junto dos visigodos ou dos ostrogodos... Esta questão - onde a colocar? - põe-se em termos geográficos, não de épocas e costumes.
Porém, ela nasceu no tempo dos consumismos estapafúrdios, dos meios audio-visuais prolixamente soberanos, do hedonismo medonho. E do individualismo. Mas um individualismo sem lugar para eremitas como ela, sem lugar para a solidão boa.
Já nem sequer há povos, apenas grupelhos, entre os quais a paz só dura enquanto as conveniências de cada um não se chocam com as dos outros. Também já não se sofre, porque todos estão embotados. Uns pelas tecnologias de ponta. Outros porque são intelectuais, mas não no sentido fantástico em que o foi Abélard, e sim no de uma tendência doentia para a criação e amamentação de ludotecas pensantes. Por isso Héloise esconde-se mais do que nunca.
Sabe que estes são tempos de cegos que guiam outros cegos. E, se é quieta e silenciosa, está muito longe de ser estúpida, e detesta as abominações destes tempos que nunca serão os seus. Foi tudo isto o que o rapazito viu. E foi por isso que a achou inacreditavelmente bela!
E, no que respeita a Héloise, a beleza importa pouco. O que ela tem de especial é outra coisa, é ter no peito um coração. Um coração de verdade, que bate muito forte, que se sobressalta, que se aperta, que às vezes enlouquece e vibra. Um coração que reage a penas e alegrias, que conhece a misericórdia, o perdão, o arrependimento; que faz Héloise rir e chorar, fugir e voltar, e que às vezes também se fecha e endurece, quando ela se sente profundamente zangada ou triste. Não é uma víscera, como aquela que possuem os actuais mutantes humanos. É um coração antigo, obsoleto, uma coisa da qual hoje quase todos riem e fugiriam a sete pés se não tivessem a certeza de que não existe qualquer perigo de contágio.
Com uma coisa assim tão rara, Héloise não se parece nada com a grande maioria das outras pessoas e estas pouco se identificam com ela. Talvez por isso, ela sempre gostou de se esconder e ficar sossegada, debruçada no seu poço escuro, a afagar as sombras dos pensamentos que traz quase sempre no olhar. Claro que se sente um bocadinho só, mas não se importa muito. Custa-lhe menos suportar a solidão do que a confusão e os enredos das actuais pessoas, e de longe lhes prefere o rumorejar das árvores, as vozes dos pássaros, o lamento doce da chuva, o estrondo dos trovões. Adora animais e estes facilmente a seguem para todo o lado, coisa de que se orgulha bastante, embora não lhe importe mesmo nada o que as pessoas pensam dela.
Héloise costuma dizer que nasceu fora do seu tempo, que pensa, sente e age como uma mulher medieval. E de facto ela faria muito mais sentido entre os antigos Bretões. Ou então junto dos visigodos ou dos ostrogodos... Esta questão - onde a colocar? - põe-se em termos geográficos, não de épocas e costumes.
Porém, ela nasceu no tempo dos consumismos estapafúrdios, dos meios audio-visuais prolixamente soberanos, do hedonismo medonho. E do individualismo. Mas um individualismo sem lugar para eremitas como ela, sem lugar para a solidão boa.
Já nem sequer há povos, apenas grupelhos, entre os quais a paz só dura enquanto as conveniências de cada um não se chocam com as dos outros. Também já não se sofre, porque todos estão embotados. Uns pelas tecnologias de ponta. Outros porque são intelectuais, mas não no sentido fantástico em que o foi Abélard, e sim no de uma tendência doentia para a criação e amamentação de ludotecas pensantes. Por isso Héloise esconde-se mais do que nunca.
Sabe que estes são tempos de cegos que guiam outros cegos. E, se é quieta e silenciosa, está muito longe de ser estúpida, e detesta as abominações destes tempos que nunca serão os seus. Foi tudo isto o que o rapazito viu. E foi por isso que a achou inacreditavelmente bela!
© Fata Morgana