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Os dias passaram. Muitos dias. Não sei se somaram semanas, meses, ou mesmo anos. Isso nunca me interessou, o nome dos dias que se agrupam nunca me disse nada. Afinal o tempo é mesmo relativo, e a ideia que se faz de uma semana é tão completamente vazia... Nunca vivi segundo essas contagens.
Junto dele, solitária, aproximei-me da árvore-do-pão e alimentei-me de toda a substância que colhi. Todas as noites punha a mesa e jantávamos, felizes, trocávamos eus numa atmosfera de outro mundo. Olhávamo-nos, riamos e conversávamos, sintonizados nas coisas desse outro mundo, que às vezes também nos calavam. Bebíamos o vinho dos deuses e comíamos as iguarias que eu fazia conforme os anjos diziam que as fizesse, e eu quase não provava. Estava saciada. Mas ele vinha faminto e era uma delícia vê-lo comer com grandes garfadas.
Aquela casa tornou-se a minha. Nunca soube ter casas e geri-las mas creio que o fiz como não me sabia capaz de fazer.
Ele ia e vinha, e percorria as ruas onde antes eu o seguira como uma cega, cheia de outros sentidos muito mais apurados do que a visão do olhar...
Quando ele não estava em casa, eu ficava horas na biblioteca - que afinal não era gémea da minha, era mais como uma irmã parecida mas muito mais crescida, mais sábia e completa. Esperava-o e sentia-me um pouco perplexa com tudo aquilo, um pouco estranha. Depois recebia-o e era transportada para os livros, que ele trazia sempre, para as histórias que me contava... e eu encorajava-o a contá-las. Era o melhor contador de histórias que jamais ouvira. Quase me adormecia os medos no embalo dos sonhos que criava para mim. Deixava-me pronta para o amar.
As noites passavam depressa demais, nós misturados, e a casa, cúmplice, aceitando-me como alguém que devia ter chegado há muito tempo mas finalmente estava ali, tão tarde. Todos os horrores de tantos anos, talvez tivessem sido desnecessários, se eu tivesse chegado mais cedo, mas não havia repreensões. Talvez porque eu estava tão exausta como o encontrara a ele, e a demora causara dano aos dois. Tínhamos de aprender a rasgarmo-nos, um e outro. Um ao outro.
Entretanto passavam-se os meus dias, que eram demasiadamente longos. As idas à mercearia, escolher fruta, legumes, queijo, vinho. O jornal. Um passeio no jardim. Isso era bom.
Mas depois regressava à biblioteca, sentava-me numa almofada a ler e nem sempre conseguia concentrar-me. Havia o medo, palpável. Era como um terceiro habitante naquela casa, e conhecia o poço escuro dele. Eu também tinha um poço escuro, meu. Perguntava a mim mesma se ainda seríamos capazes de nos debruçarmos nesses buracos negros cheios de monstros e seres límbicos, e sabia que era fundamental que o fizéssemos, para podermos ser um. Termos alguns monstros comuns, defendermo-nos dos perigos que nos ameaçassem, sem nenhum de nós estar ignorante de que existiam. Aceitar o que não pudesse ser mudado; expulsar os demónios que soubéssemos que podíamos vencer juntos. Sabia que tinha de ser assim, mas não gostava nada de falar dessas coisas dolorosas, porque ambos as queríamos esquecer.
Estes eram os dias... Sim, os dias deixavam-me muito cansada de pensar em tudo isto.
Mas depois ele chegava, novamente. Havia aquele abraço impossível de dizer; ele regressava sempre a casa como se viesse de muito longe cheio de saudades minhas, e dissolvia o penedo frio que cada dia tinha deixado no meu peito... e eu ficava silenciosa, nunca queria estragar o momento. E não me arrependia. Até ao dia seguinte...
© Fata Morgana