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29 de maio de 2008

Hoje não posso escrever. Colou-se-me uma chiclette nas ideias. Estava a pensar com tal desenvoltura que não prestei atenção e poisei um pensamento ao acaso... com o resultado de ter esborrachado aquela coisa muito mastigada e colante, que agora ocupa toda a minha atenção.

Não gosto, mas se não me dedico a esta coisa ridícula e de ínfima importância - da qual me quero livrar rapidamente! - todas as ideias vão ficar pegajosas. Eu não suporto ideias pegajosas.

(O pensamento é absolutamente livre, excepto quando se lhe cola uma chiclette...)


© Fata Morgana

PS. Que grande maçada, além de pegajosa tinha de ser também enjoativa (de morango!?!?)

25 de maio de 2008


A casa antiga… o meu lugar favorito. Onde eu conseguia sentir-me, inteiramente. Sabia porque tinha dito ''espero'' e não esperara, e também porque atravessava tantos perigos como se fosse uma criança levada pela mão e estivesse segura de que nenhum mal poderia acontecer-me, nunca.
Costumava ficar absorta, ocupada, a ouvir as nossas vozes misturadas, ecos vindos das paredes tão velhas, pensamentos meus, tudo em uníssono... Ou percorria as antecâmaras e os quartos, as salas, corredores e escadarias, exactamente como faz um fantasma no lugar amado, detendo-me nos cantos mais meus, lugares de mim. Era sempre uma coisa de ganhar e de perder.
Acho que pulsávamos juntas, a casa e eu. Nunca ali fui intrusa. Os reposteiros gastos mal ocultavam as janelas de vidros partidos, por onde o vento entrava, e voavam, como longos braços tacteando em busca de um corpo querido, envolviam-me em carícias; e o sussurro doce do soalho a ranger sob os meus passos era uma voz de amor, sempre.
Havia apenas um espinho, e era um espinho que nascia de mim, mas eu não sabia afastá-lo, não era capaz. Pensava demais naqueles que a casa amara muito antes de eu chegar, mais do que a mim... ou talvez não. Aquele lugar era tão eu e dava-se-me tanto. Tinha o desejo imenso e a impressão de ser ali muito bem vinda. Mas a dor permanecia, eu não podia minimizá-la, pois a sua origem estava nas coisas do passado, eram as coisas do passado que me assombravam, e gosto tanto de tudo o que já foi, que não conseguia, por isso, ser, e quase preferia ter sido. Fazer parte das memórias queridas! Por vezes pensava que o verdadeiro fantasma era eu e fugia, voltava aonde não sentia o desejo.

Esse era sempre um regresso difícil, doloroso, mesmo. De cada vez deixava para trás um pouco de mim, vinha sempre menos eu. Cada vez detestava mais a casa nova, a casa onde eu não queria morar, com todas as chaves que eram precisas para entrar, e quase me ouvia dizer ''não, não, não'' enquanto dava as várias voltas às fechaduras. Despia-me e metia-me na cama, sem tirar o leve odor a humidade da pele. Adormecia cansada e suja, e tinha sempre sonhos importantes, de que era incapaz de me lembrar.


© Fata Morgana

8 de maio de 2008


O voo é dos pássaros. É um êxtase que lhes pertence e eu cobiço tanto.
Tantas vezes fico sentada nos degraus a sentir que dentro de mim há pássaros que voam em lugares esquisitos que só em sonhos conheço. Gostava de saber soltá-los mas não sou capaz de provocar o estado de consciência alterada quando quero. Queria ver os meus pássaros cá fora. Imagino-os semelhantes aos bandos de estorninhos, enchendo o entardecer de desenhos hipnóticos. Mas se pudesse soltá-los, talvez não fosse capaz de os recolher de novo, ou eles próprios não quisessem voltar ao meu abismo interno.

Os monstros dos sonhos também existem para cá dos sonhos. São sempre os mesmos, trazem-me pela mão desde pequena. Nunca compreendi porque são, todos eles, mudos, nem como se misturam com os pássaros de dentro, já que me são exteriores.

Suspeito de que lhes pertenço, porque também eles me criaram, foram-se escondendo de todos, que os não viam… mas via-os eu, sempre. Nunca fui capaz de perguntar ''mãe, vês ali os monstros?'', nem de dizer ''pai, não saias daqui porque eles são tão frios''. Acabei por aceitá-los com uma certa indiferença. Habituei-me a essa solidão. Talvez por ter em mim os bandos de estorninhos, comecei a mergulhar para dentro. Ausentei-me.
E claro que também aprendi a fazer as coisas do costume, ou outras novas, sob os seus olhares silentes.

Mas ainda hoje há alturas em que não consigo deixar de lhes ser cativa. Quando tenho as mãos magoadas e a sede não morre, e o vermelho em mim transborda a loucura que escondo; o estar sempre perdida e saber que todos estaremos sempre sós com a chuva desabrida a escorrer no rosto, - ''já estou a chorar preto?'' ''já'' - e não é só chuva misturada com eyeliner, há também o sal que só eu sei. Arde. Não posso fugir desse ardor nem do vermelho que transborda. Nem dos monstros.

É quando estou assim, presa, que lhes falo. Em vão. Não têm palavras, não fazem gestos. Ficam a olhar-me com uma espécie de doçura perversa. Suponho que sabem que conheço muitas das respostas àquilo que lhes pergunto, como sei que as línguas deles são a minha língua.

Não sei porque deixaram intactos os meus olhos.

© Fata Morgana