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3 de junho de 2008

Habituei-me a segui-lo. A princípio disfarçava, parava nas montras, deixava-o virar a esquina e depois retomava-lhe o rasto, no passeio do outro lado da rua. Praticava uma espécie de aparente distracção e cultivava um andar errático, como se estivesse metida no meu mundo interior e o estar ali fosse apenas um acaso. Mas depressa pus de lado esses cuidados. Ele era um homem de hábitos e eu começava a conhecer-lhos.
Por vezes tomava-lhe a dianteira, chegando primeiro à livraria, ao café, ao bar nocturno onde ele fosse, e quando ele entrava já eu me encontrava lá, com os olhos presos no livro que às vezes não lia. Aprendi igualmente a cruzar-me com ele, brincando com os quarteirões, de modo que nos transformei em dois estranhos que partilhavam as mesmas ruas, lugares e até costumes, como aquele de andar sempre com livros.

As leituras dele interessavam-me de uma forma obsessiva, sentia uma alegria esquisita se o via com um livro que eu já lera. No entanto, quase todos eram novidades para mim, escolhas bastante fora do comum, quase fantásticas. Isso agradava-me e procurava comprá-los. Eram sempre livros raros e mesmo no alfarrabista onde ele arranjava grande parte do que lia, muitas vezes não havia outro exemplar para mim. Porém, a persistência acabava por ser recompensada: em minha casa ia crescendo uma biblioteca gémea da dele.
A cada nova aquisição eu deixava, temporariamente, de o seguir pelas ruas, procurando-o antes na leitura. Era como se me transportasse para dentro daquele homem estranhíssimo, espiava-o em cada página, como uma verdadeira voyeuse, parecia-me que as emoções que me percorriam eram as suas, não as minhas, e que também nós próprios nos estávamos a tornar gémeos.
Um dia arrematei uns poucos de volumes particularmente difíceis de conseguir e meti-me em casa, a compor as estantes, tentando colocar os livros como ele o faria. Sentia-me ébria de emoção, invadida e invasora, anjo e demónio.

Durante dias fiquei fechada a ler. Adormecia extenuada, esquecia-me de comer, já não sabia se era eu, a mesma de há uns meses. No espelho, o rosto era o de sempre, mas a expressão alterara-se. A mulher do outro lado era outra, mais tocada, mais bonita. E essa mulher murmurava, não sei se para mim, ''tenho de o encontrar de novo''. Uma tarde desapareceu, ou fui eu que me escapei para a rua.

Procurei-o, sentindo-me um pouco desorientada, sem saber as horas nem o dia da semana. Não consegui encontrá-lo mas estava cansada e deixei-me ficar no café dele. Pedi um chá e um brioche, e entrei sem resistência na realidade que estava à minha frente, feita de interrogações, de frases loucas e rostos que se transfiguram.


Quando voltei daquela ausência momentânea ele estava sentado na mesa ao lado da minha. Olhava-me e sorria.
- O que esteve a fazer tantos dias sem sair de casa?
- Eu... Como diabo sabe que não saí de casa?!
Ele riu suavemente e acendeu um cigarro com o maior dos vagares. Depois voltou a olhar-me perfeitamente sério.
- Sabe que está pálida e muito mais magra?
- Quem é você? - perguntei, como se não soubesse... ou talvez porque na realidade não sabia.
- Se for para se esquecer de mim e deixar de aparecer, nunca mais lhe encomendo os livros que procura.


De repente estávamos juntos no mundo feito de interrogações, frases loucas e rostos que se transfiguram. E havia mais, muitos mais mistérios.


© Fata Morgana

Pintura de Edward Hopper

6 comentários:

Jo disse...

Gostei muito. Senti-me como se fosse ela, ou como se tivesse vontade de o ser. :)

beijo*

Ana Beatriz Frusca disse...

Wow! Fiquei toda arrepiada com essa simbiose toda. Parece que houve uma espécie de sutura na personalidade de ambos...Ver-se através do outro...interessantíssimo!
Já me flagrei algumas vezes tentando desvendar as pessoas pelos seus hábitos: leitura, música, local...
Texto delicioso, fluido..fiquei triste quando chegou ao ponto final...queria mais, só que a vida é cheia de reticências e com desfechos em aberto.
Parece que aquele chiclete chato é enjoativo já descolou-se de tuas idéias, né? LOLLLLLL!
Beijos.

Fata Morgana disse...

Fico contente!
Um beijo, Mariazinha.

Fata Morgana disse...

Biazinha,

e vais ter mais, porque isto é uma história que estou a contar.
Começou mais abaixo, no texto do dia 13 de Abril :)

Beijo*

Ana Beatriz Frusca disse...

Dia do meu aniversário. Vou ler agora.

Bjuxxx.

^^

Fata Morgana disse...

Já te respondi lá, Biazinha :)