Sentei-me no chão, abracei os joelhos e deixei-me ficar a sentir aquilo que chegava, devagar. Texturas, sons, cheiros. E tudo tão real que me esqueci de que estava em casa, o hoje dissolvido em sei-lá-quando porque às vezes o tempo não é nada, e as coisas vinham ter comigo misturadas. Levavam-me para muitos longes, que em vez de dispersos eram unos. Eram um. Estranho lugar, caleidoscópio de nós.
Os olhos que eu via como se fossem azuis eram a única luz nas negras palavras ditas pela voz que primava sempre pelo tom baixo. E as mãos. As mãos ásperas do barro tacteavam-me o rosto, fechavam-me os olhos ''imagina a escuridão para sempre, Morgana'' e eu afastava-as, afinal tão suaves. Não precisava de imaginar. E quando ia mergulhar no pálido olhar azul encontrava dois carvões a coruscar na turbulenta noite de lábios rasgados.
Cada gota de chuva era como uma bênção e a ventania de um verão demasiado quente emaranhava os meus cabelos. Riamos na escuridão, debaixo das árvores, sabíamos que estávamos ambos completamente sós e que não havia nada maior do que está-lo juntos. Os comboios não paravam de partir e nunca se atrasavam, o novelo de linhas dobava-se alheio aos meus desejos, e nas mãos eu abria o livro mas adormecia, exausta, embalada no sonho-solavanco. Havia ruas sem ninguém. Caminhos que percorri sem os chegar a conhecer e a porta abria-se ''com que então vinhas cedo, hã...?'' e riamo-nos.
No canto dos morcegos éramos quase invisíveis. Eu queria sempre ir para lá e ficávamos um pedaço sem trocar uma palavra e de repente misturávamo-nos completamente. Eu não dançava porque os meus pés um dia tinham morrido, e costumava contar mil versões de como isso tinha acontecido, e todas eram a verdade pura e era tão estúpido poder passear mas não dançar, nunca mais.
Cantava, isso sim, nas ruas estreitinhas, e as pessoas olhavam admiradas mas não me lembro nada de ver ninguém, talvez não houvesse ninguém o que é muitíssimo improvável. E a mim pareciam tolas as minhas compras e aquisições. Folhas e pedras, pedaços de um plátano abatido, um fóssil, um martelo, o Discurso do Método e outro livro que fiquei feliz por encontrar mas depois não me trazia qualquer recordação e ainda agora não me lembro qual era. Olhando este espólio tão esquisito eu ficava desconcertada comigo mesma ''quem visse estas coisas declarar-me-ia louca''; ''não, apaixonar-se-ia por ti!'' - e cada um ficava na sua.
© Fata Morgana
Pintura de Lucien Levy-Dhurmer
10 comentários:
... entre loucura e paixão... distanciamento equidistante!
As palavras, as palavras... que se soltam, a folha que acolhe anseios, afectos que não 'dizíveis', metamorfoses, tormentos.
O tempo que se atenua nos contrapontos das frases...
Escrever... expio a palavra de lado, acto exaltado, gesto dolente, refúgio de momentos que se esvai pelos dedos...
'... escrevamos enquanto vivermos, senão a morte, em vida, vai deixar-nos no esquecimento...'
Maria Gabriela Llansol, Contos do mal errante, edções rolim, 1986
Sensibilizada pelo olhar em 'fragmentos'
... é sempre um prazer rever amigos!
Tempo, tempo, tempo, eita mano velho!Nos traz recordações e sentimentos inéditos em sintonia com o nosso pensamento, levando-nos para a viagem das sensações.
Beijos, Fata.
Mesmo crescidinha, continuas a gostar de brincar às casinhas.
Um dos resultados, este texto, é delicioso. E a prova disso, é que o escreveste em casa...
Contrariando-te, quem te visse, achava-te louca, mas apaixonar-se-ia por ti na mesma...
Bom fim de semana, beijinhos.
Fragmentos culturais,
é o "olhar em fragmentos", sim :)
E é um prazer rever amigos, claro!
Biazinha,
mano velho e sempre presente, que no fundo não existe.
Beijos para ti!
Nilson,
quais casinhas, eu gosto é de trepar às árvores, de brincar aos índios e de ser Apache :)
Bom fim de semana para ti e beijos.
Querida Fata
Belo texto, porventura de tempos passados... vi-te adolescente a brincar com os elementos...
Um beijo
Daniel
Ando sem tempo... :/
Adere, tu e o Gold.
Beijinhos.
Olá Klatuu!!!!!!!!! :)
Que bom ver-te aqui! Tal e qual como a Bia, que deixou um beicinho nos teus comentários, eu também senti o mesmo.
Só que eu não sou doce como ela e calei-me muito calada... até agora, que já mereces saber que fizeste cá falta :)))
Eu adiro. Dá-me um tempo como leitora, sim?
O Gold: vê o e-mail! ;)
Dark kiss
Daniel,
quase não te via, comentaste aqui e no anterior e eu não reparei.
Não, não é de adolescente.
LOOOOOOOOL eu ainda chego a casa com pedras e folhas nos bolsos, e compro as coisas que gosto misturadas com as que fazem jeito (ou mesmo falta!), torna-se tudo muito onírico...
Beijo
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