Quando me levantei, com gestos um pouco sonâmbulos mas obviamente disposta a sair do café, ele não pareceu surpreendido. Era como tactear o silêncio, ele sabia que eu precisava de entrar profundamente no silêncio, não fez um gesto para me deter. Despedimo-nos com acenos de cabeça quase imperceptíveis.
Assim que me vi no passeio comecei a andar muito depressa e dobrei a esquina, como se estivesse a fugir. Só então voltei a abrandar os passos, os gestos, os pensamentos. Fui para o jardim grande, para o relvado que fica debaixo da enorme árvore exótica, e sentei-me, muito quieta, à espera de sentir picadelas nas pernas. Pensei que as formigas talvez pudessem trazer-me de volta, porque estava perdida num lugar estranho, numa amálgama de páginas de muitos livros, e o olhar negro sem fundo com que eu os lera talvez não fosse meu, ou era e eu ainda não conseguia perceber como se tornara assim. Não queria pensar que sempre tivera uns olhos daqueles. Olhos de jusante, de encontrar mares escuros, encapelados.
A tarde ia tornar-se noite e eu não podia permanecer ali muito mais tempo, apesar do desejo louco de me deixar ficar fechada, impedida de fazer o que sabia que faria de seguida. Queria desesperadamente adiar. Mas passou um vigilante e disse qualquer coisa na minha direcção. Aquiesci e ergui-me devagar, peguei no meu livro, saí do jardim e cumpri os meus passos de condenada.
Uns vinte minutos depois tocava à campainha, sem outro sentimento que não o medo de ter deixado passar tempo demais.
Ele abriu-me a porta, não pareceu nada surpreendido. Não esboçou um gesto nem disse uma palavra, limitou-se a olhar-me com um sorriso que passava dos olhos dele para os meus. Náufragos, pensei. Agora somos ambos náufragos, e avancei um pouco, enquanto ele se afastava para eu passar ao interior da casa. Estava a despir o casaco quando a porta se fechou atrás de mim.
Pronto, cheguei. Eu sabia que era uma chegada. Voltei-me e ele pegou no meu casaco, como se lhe fosse uma peça muito familiar. Pendurou-o num cabide, contornou-me e começou a andar pelo corredor, certificando-se, num gesto de cabeça, de que eu o seguia, até entrarmos numa cozinha grande.
Finalmente o sorriso desceu-lhe aos lábios, abrindo uma pequena brecha no todo singular da situação e, na sua voz baixa, comunicou que comia pouco e não tinha nada de jeito em casa. Abraçámo-nos, como se essa fosse a melhor resposta. Misturámo-nos com avidez, num roçar de rostos e de lábios cheios de beijos. Disse-lhe segredos ao ouvido, não sei o quê, mas disse muitas coisas. Ele apertou-me mais, ele também sabe. Sabia muito melhor do que eu.
Abri o frigorífico, espreitei nos armários – amanhã tenho de ir às compras – e encontrei com que improvisar um jantar.
Preparei uma omeleta, cortei umas rodelas de chouriço, abri uma garrafa de vinho e foi a nossa primeira refeição juntos. Sem muitas palavras. Sim, quase não precisamos de palavras. Eu queria falar mas não era preciso e nem conseguia, era tudo demasiado intenso, emudecia!
Éramos quase desconhecidos mas, sem como nem onde, tínhamos estado juntos desde sempre. E encontrávamo-nos, por fim.
© Fata Morgana
A pintura é de William Blake
A tarde ia tornar-se noite e eu não podia permanecer ali muito mais tempo, apesar do desejo louco de me deixar ficar fechada, impedida de fazer o que sabia que faria de seguida. Queria desesperadamente adiar. Mas passou um vigilante e disse qualquer coisa na minha direcção. Aquiesci e ergui-me devagar, peguei no meu livro, saí do jardim e cumpri os meus passos de condenada.
Uns vinte minutos depois tocava à campainha, sem outro sentimento que não o medo de ter deixado passar tempo demais.
Ele abriu-me a porta, não pareceu nada surpreendido. Não esboçou um gesto nem disse uma palavra, limitou-se a olhar-me com um sorriso que passava dos olhos dele para os meus. Náufragos, pensei. Agora somos ambos náufragos, e avancei um pouco, enquanto ele se afastava para eu passar ao interior da casa. Estava a despir o casaco quando a porta se fechou atrás de mim.
Pronto, cheguei. Eu sabia que era uma chegada. Voltei-me e ele pegou no meu casaco, como se lhe fosse uma peça muito familiar. Pendurou-o num cabide, contornou-me e começou a andar pelo corredor, certificando-se, num gesto de cabeça, de que eu o seguia, até entrarmos numa cozinha grande.
Finalmente o sorriso desceu-lhe aos lábios, abrindo uma pequena brecha no todo singular da situação e, na sua voz baixa, comunicou que comia pouco e não tinha nada de jeito em casa. Abraçámo-nos, como se essa fosse a melhor resposta. Misturámo-nos com avidez, num roçar de rostos e de lábios cheios de beijos. Disse-lhe segredos ao ouvido, não sei o quê, mas disse muitas coisas. Ele apertou-me mais, ele também sabe. Sabia muito melhor do que eu.
Abri o frigorífico, espreitei nos armários – amanhã tenho de ir às compras – e encontrei com que improvisar um jantar.
Preparei uma omeleta, cortei umas rodelas de chouriço, abri uma garrafa de vinho e foi a nossa primeira refeição juntos. Sem muitas palavras. Sim, quase não precisamos de palavras. Eu queria falar mas não era preciso e nem conseguia, era tudo demasiado intenso, emudecia!
Éramos quase desconhecidos mas, sem como nem onde, tínhamos estado juntos desde sempre. E encontrávamo-nos, por fim.
© Fata Morgana
A pintura é de William Blake
36 comentários:
Gosto de te ler, e este teu texto desperta a cor amanhecida das coisas simples. No inicio ha silêncio, parece pesado, parece antigo e cansado contra o mundo. Depois, no calor humano, tudo se torna muito fresco.
Porque escolheste esta pintura? O que te transmite?
Com muita riqueza criativa e psicológica, um texto que grita... fundo e profundo esboçando a tua íntima humanidade! Beijão na esquina do teu rosto!
:-)
Edu
HUm...a terceira parte da narrativa. Gostei bastante. Tem uma riqueza psicológica densa...tão densa que chego a visualizar a cena.
Vou descer pra ver os posts pretéritos dessa narrativa.
Beijos.
És uma das privilegiadas que finalmente encontra o desconhecido com quem sempre esteve?
***
Hornedwolf,
amo a simplicidade (desde que não seja a néscia) e o silêncio (desde que não o da falta de ideias). Gosto de tudo o que é antigo e cansado - desencanta-me a actual geração "forever young de ginásio". Cansa-me o mundo, tal como está, sempre disse que não sou daqui. Daí isso transparecer.
O muito fresco que sentes no final, sim, é o calor e vem no final, é um calor que já muito poucos conhecem e menos são aqueles que, se o conhecerem, ainda o transmitem... por falta de "a quem". Não sei se é muito humano. Eu convivo com monstros desde criança - os meus monstros. Gosto deles, sabes? Afligem-me... mas se os perdesse ficava sem referências importantes. E também gosto de anjos, sinto-os.
Escolhi esta pintura porque representa a entrega a um monstro. Ou a um anjo. Por vezes é difícil distinguir. Mas é uma pintura muito confortável para mim! :)
(Para além de achar William Blake um dos Maiores - sobretudo na escrita, mas também a pintura me toca fundo.)
Edu,
isto é mais do que um texto, é uma história que ando a contar. De vez em quando pego no ponto onde fiquei e escrevo mais uma página. Tento que cada página valha por si, mas o todo é que importa.
Fico contente por achares que há o grito fundo.
Obrigada e um beijão para ti também!
Biazinha,
é muito difícil responder-te :)
Sinto isso sempre que alguém se torna próximo para mim, sabes?
Isso quer dizer que se pudéssemos ir juntas tomar um chá e um brioche - forma elegante para dizer umas imperiais (chopes - escreve-se assim?) - teria imenso que te dizer!
Ah, mas espera, esqueço-me da tua idade!! Acho que só podias beber uma lambreta :)))
(Lambreta é um copo daqueles de servir espumante, mas com cerveja :)
Pois seja, bebíamos lambretas e depois conversávamos durante horas!
Beijos*
Psiquê,
sempre estive; sempre soube. Sempre fugi. Assusta pensar que o monstro não desaparece se eu fechar os olhos! Mas tem de ser.
***
Não importa...
Pra você:
trem azul
Beijos.
Beto Guedes - Trem Azul
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Música enviada por: anjo45
Coisas que a gente se esquece de dizer
Frases que o vento vem as vezes me lembrar
Coisas que ficaram muito tempo por dizer
Na canção do vento não se cansam de voar
Você pega o trem azul
O sol na cabeça
O sol pega o trem azul
Você na cabeça
O sol na cabeça
Coisas que a gente se esquece de dizer
Frases que o vento vem as vezes me lembrar
Coisas que ficaram muito tempo por dizer
Na canção do vento não se cansam de voar
Você pega o trem azul
O sol na cabeça
O sol pega o trem azul
Você na cabeça
A intimidade é uma cena mesmo egoista: morfam tudo sozinhos; nem sobra nada pra quem tem fome! :)
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Eu não sou gótico e cortei uma mão ao Ruela! :)
eu sou o tal da mão ;)
Palavras para quê ;)
brilhante.
Pela primeira vez deixo-te palavras. Poucas, muito poucas mesmo.
Leio, fecho os olhos, absorvo, volto a ler e fico assim um tempo infinito.
Pode ser que um dia consiga falar contigo sobre o que escreves
Para já não e não te sei explicar porquê...
Beijinho
Góticos?? Isso é pessoal marado que não gosta de futebol! :)=
na ausência de novidades, deixo um novo beijo!
:-)
Edu
Biazinha,
obrigada! Não conhecia a canção, nem os intérpretes... Vais ter de te habituar à minha ignorância crassa de tudo o que não seja rock (por gosto!) e clássica (por gosto e profissão).
Deves ter pensado que sou doutro planeta quando te perguntei de quem era aquela canção da conhecidíssima Adriana Calcanhoto!!! :))))
Beijos
Lord of Erewhon,
cortaste a mão ao Ruela mas ele não perdeu o humor, como se vê no comentário seguinte, que é do próprio!
Foi o Klatuu que te emprestou o machado para fazeres o serviço? :)))
Dark kiss
Ruela,
obrigada por, mesmo sem mão, teres vindo homenagear o meu texto! ;))
Andorinha,
gostei de saber que lês o que escrevo e acontece tudo quanto dizes... Gostei!
Estou aqui - e também vou lá visitar-te, claro - e quando explicares, de certeza que também vou gostar de saber! :)
Um beijo grande.
Klatuu,
pois, por acaso não costumam gostar. Eu gosto um bocado! Mas acho que não devia haver árbitros, devia basear-se nos códigos de honra, nem aquelas "delicadezas" de não ser permitido permanecer em campo quando se está a sangrar. Imagina um torneio medieval com semelhante regra! Eu tento ver o futebol como se fosse um torneio medieval :))))
Chego sempre à conclusão que os cavaleiros são fraquinhos :(
Dark kiss
Edu,
pois é, não tenho vindo postar, mas aguardam-se novas, brevemente. Os arautos farão a devida proclamação ;)
Beijo para ti.
Sumida, fadona!
Ah, eu sou babada por rock: metalcore, hardcore, back, ghotic, trash, death...mas não sou radical...gosto de MPB, música clássica, jazz, blues....como todo fim-de-semana vou ao undeground, durante a semana escuto outros tipos de música, vale inclusive a de vosso país. Vida sem música é vida sem vida!
Bjuxxx.
^^
Um texto belíssimo...
A última parte arrepiou-me...
Já me senti mergulhar nessa situação que tão bem (d)escreveste...
A desorganização solitária que se faz algo muito de repente, vinda de lugar desconhecido...
Gostei de toda a "pausa" necessária... do acordar para a realidade e perceber a possibilidade de sonhar-se acordado...
do receio de viver esse mesmo sonho... realmente...
Enfim... Adorei...
Beijo*
Ai, que continuação (final?) perfeita ! E eu que ainda não tinha vindo ler mais esta pérola! Gostei muito. Vi tudo, como diz a Bia. E a pintura, que frisson...
:)
beijo*
passei-me por aqui pra te deixar mais um beijão... amiga!
:-)
Querida Fata
Acreditas em reencontros através das vidas, logo... :)
Um beijo
Daniel
Gosto da intensidade da tua escrita. Continua.
As almas [re]conhecem-se, sempre...
Gosto tanto de te ler, tu sabes ;)
Beijos
No abismo
desconhecido
Escuro e sedutor
Olhos que falam
e amam
Olhares
fruto da passagem
Ei-los...
passam e
Partem
lembranças
E na
incompreenção a
Beleza perdura
compreendida
Nos
corações solitários.
:))
Viajei pelo teu blog.
Uma viagem magnifica!
Já te reenviei convite da NA - vê se aderes e publicas.
Dark kiss.
Morgana, quando é que voltas de férias, hã?
Quer me matar saudades?
Porra, grandes férias! :)
Sinto a falta de sentir dessa forma com as palavras não ditas apenas feitas em gestos...
um beijo
recuei e li o "antes " deste capítulo da história....
Divinalmente entusiasmante....
É tão reconfortante encontrar novamente alguém que nos é mais do que conseguimos explicar....
Escreve maravilhosamente... :)
Agradeço a todos os que passaram e disseram, e também aos que guardaram o silêncio :)
Acabaram-se as férias, estou de volta.
Um abraço!
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