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4 de agosto de 2009


Desconheço a autoria da imagem


Sentada na poltrona dele, sentia a tarde, anormalmente longa, e sabia que era o tempo. Estava parado.
Tinha pousado nos joelhos um livro com as páginas todas por voltar. Não podia ler, estava debruçada para dentro, para o fundo do poço escuro, e os monstros estavam todos lá, ocultos. Sabiam que os espiava e que não podiam, ainda, assustar-me. Não tinham pressa. O tempo estava parado. Era preciso que o pêndulo retomasse o seu movimento absurdo e eu recomeçasse a mexer-me sem resquícios de sonambulismo. Teria de ser realmente eu, para os meus monstros poderem assustar-me.

O escuro acabou por me chamar a atenção. Era a noite, que não chegara de um modo fluido e gradual, antes acontecera como uma brusca mudança de cenário. Da mesma forma ele estaria de volta. Ergui-me, acendi a luz do candeeiro de pé e arrumei o livro numa das estantes.
A biblioteca era o meu lugar favorito. Era gémea da minha... ou antes, era uma irmã mais velha e mais sábia, mas muito parecida. De repente tive saudades da minha própria biblioteca e percebi que também sentia a falta da rapariga que o seguía e comprava os mesmos livros que ele. Era como se não tivesse sido eu; como se eu fosse a que vivia do outro lado do espelho dela e lhe tivesse usurpado a realidade. Talvez a tivesse deixado presa para poder viver com ele. Ela não saberia viver ao lado daquele homem. Claro que não saberia, ela era demasiado real. Teria visto os monstros no fundo do poço, conhecê-los-ia. Quereria ver o poço dele, também, e perguntaria coisas a respeito dos seres que o habitassem. Eu preferia ignorá-los, matá-los com silêncio. E eles não morriam. Talvez eu devesse chamá-la, devolver-lhe o que só ela conquistou e eu roubei.

- Oh, estás aqui tão quietinha... - ele sorria, a caminho do meu beijo.
- Sim, esqueci-me das horas.
- E de comer também, claro.
Concordei. Era verdade que só tinha comido fruta e bebido café, logo de manhã. O ralhete dele era encantador... e não me era dirigido. Pertencia a ela, era mesmo o tipo de coisa que sempre lhe tinham dito a ela, não a mim. Eu não existia. Não tinha monstros. Ou talvez fosse o maior dos monstros dela e portanto, de um modo negro, também lhe pertencia.

Nessa noite não pude dormir. Assim que ele mergulhou no sono levantei-me e andei pela casa - a casa deles, onde ela nunca pudera entrar - a casa onde os fantasmas esperavam por ela e não por mim. É impossível enganar os fantasmas.
Parei em frente a um espelho e olhei-me, tacteando o rosto como se fosse cega, percebendo que era igual ao dela, mas mais feio, mais tocado, marcado por uma ausência de fogo. Forcei-me a sorrir. Ficava mais parecida. Como se me ocultasse atrás de um véu e não se notassem as diferenças.

Voltei ao quarto, muito devagar, peguei nas roupas que deixara pousadas numa cadeira, vesti-me, e olhei para o homem adormecido, tão sozinho. Oh, ele também sabia! Lembrava-me da expressão dele no dia em que abrira a porta para ela entrar... e entrei eu. Quanto tempo teria passado até se tornar evidente? Era por isso que ele estava sozinho.

Saí para a rua e voltei para minha casa - a casa dela. Tinha de lhe dizer que se apressasse, que teria de estar a dormir tranquilamente ao lado dele quando chegasse a manhã.


© Fata Morgana

23 comentários:

bat_thrash disse...

A confluência de eus dentro de si.

Beijos.

PS: Essa narrativa não faz parte daquele conto?
Aiai...saudades! sempre que tenho um dedinho de prosa contigo fico a querer mais.
Não, ainda não voltei a blogar...minhas aulas começam semana que vem e estou aproveitando esta como se fosse a última de minha vida.

Fata Morgana disse...

Olá Bat.

A confluência de eus um bocadinho inconciliáveis... ou talvez não :)

Sim, esta é a 5ª porção do conto. Se quiseres ler seguido está tudo na lista de etiquetas como "Conto".

Sempre que posto mais uma "página", e tenho feito isso muito espaçadamente, tu notas logo que se trata da continuação. Fico muito contente por conheceres bem estas terras... :)

Um beijo grande

bat_thrash disse...

Dificil só se for pra tu, pois há uma confluência de EUS fervilhando em mim...:). Li uma vez um livro que tinha um título mais ou menos assim:O meu eu e os outros. Não é litralmente assim, é mais ou menos.
Mas sei lá...sou maradíssima!Sempre vejo mil eus em mim, nos outros... mas não conselho a ninguém são tentar entender-me.
Sabe que não notei a etiqueta ontem? Mas ando cegueta...:P

Beijos.

bat_thrash disse...

Ah, Lembrei o nome do livro e do autor: O Eu profundo e os outros Eus de Fernando Pessoa. Minha mãe lia pra mim quando comecei a me tornar uma aborrescente...hahaha.
Acreditas que deitei-me e o diacho do nome que eu não lembrava ficou a martelar-me as idéias, eis que...EUREKA!
Liguei o pc de novo e vem aqui só pra te contar.
Tenho um medo maior
do que eu. Sinto na minha mão, não sei como, a chave de uma
porta desconhecida. E toda eu sou um amuleto ou um sacrário
que estivesse com consciência de si próprio. É por isto que me
apavora ir, como por uma floresta escura, através do mistério
de falar. . . E afinal, quem sabe se eu sou assim e se é isto sem
dúvida que sinto?. . .
(Excerto de O MARINHEIRO).
Aiai...agora possa voltar a dormir com todos os meus eus confluentes...LOL!

Beijo gigaaaante.

Fata Morgana disse...

Bat,

eu não disse que era difícil, disse que eram (os EUS) "um bocadinho inconciliáveis, ou talvez não". Mas não acho que seja fácil. Pelo menos não é sempre fácil. É um pouco como diz o Paul Valéry: "Adorei-me, detestei-me; depois envelhecemos juntos" (a frase não é textual, não me lembro das palavras exactas, mas a ideia é exactamente esta).

Sobre a tua "insónia", hahaha... Eu conheço essa capacidade fantástica da mente, de fazer saltar, de repente, aquilo de que não nos conseguíamos lembrar, e muitas vezes já desistimos e nem estamos a tentar mais - é quando me sabe melhor, adoro as coisas "subterrâneas" dentro de nós, que acontecem num nível que não é o que chamamos consciente.
E deixaste aqui um belíssimo excerto. Obrigada por teres ligado outra vez o pc e teres deixado completa a tua mensagem! :)

Beijo gigante para ti*

andorinha disse...

Li, reli, treli...:)
Tão belo que quaisquer palavras serão supérfluas.
Quando algo me toca fundo, fico assim, sem palavras, somente a apreciar a beleza e a saboreá-la vezes sem conta.
Falo a sério, é assim que sou e reajo.

A propósito de "Eus", acho que lidas muito bem com os teus, não serão tão inconciliáveis assim...

E aqui para nós que ninguém nos ouve:), as pessoas que só têm um "eu" são um cadito monótonas...:)

Beijo grande*

Fata Morgana disse...

Andorinha,

:)) pois são (monótonas)...
E é verdade que lido bem, mas não é assim muito fácil. Estou sempre nas duas margens do rio profundo, mas vou acenando amigavelmente de mim para mim :))

Obrigada por vires. Para mim é importante ter os amigos por aqui.

Beijo grande*

Frankie disse...

Chorei.
E não te digo mais nada, minha querida. Nem preciso.

Daniel Aladiah disse...

Querida Fata
Mais um pouco da tua deliciosa prosa. Como um gato furtivo que arranha uma parede que só existe para servir de suporte à sua impressão.
As vicissitudes de podermos ser dois ou mais... como se as histórias de vida pudessem seguir a par, mas não... só há uma que é real, e nos magoa ou não...
Um beijo
Daniel

Fata Morgana disse...

Frankie,

Claro que não precisas :)

Beijinho grande.

_________________________


Daniel,

A do gato está bem vista ;)

Eu acho que podemos ter mais do que uma história de vida. Há sempre o lado objectivo e o subjectivo. Sentidos, experimentados, portanto vividos, em paralelo. Posso contar a história da minha vida repetidamente, sem mentir, e ser sempre muito diferente (na realidade é isso que eu faço sempre, aqui e no meu outro Castelo ;)

Um beijo.

witch disse...

...E hoje estava mesmo a precisar de te vir ler... *


Kisss...

Fata Morgana disse...

Olá, Witch!

Então, ainda bem que vieste! Ontem as minhas palavras foram para ti, que as procuraste :)

Dark kiss

Ruela disse...

Belíssimo texto!


Ai este som ;)


bjs.

Fata Morgana disse...

Ruela,

fico contente por gostares do texto, (do som já sabia que gostavas ;)

Beijos.

Ana Beatriz Frusca disse...

Ui...não tá dando pra encergar aonde se comenta...só enxerguei porque selecionei...queres deixar-me cega?
Eu bem tava indo con a Bat fazer uma folia com os vampiros, mas demos com o nariz na porta.:(
Ai ai...saudades!
Bom fim de semana e beijos

Fata Morgana disse...

Biazinha,

pois, eu sei, é tudo preto, ou quase :)))
É especialmente ideal para olho de morcego ;)

O salão das festas para a folia com os vampiros ainda está para muito trabalho, mas vai valer a pena. Tu e a Bat são convidadas de honra, hão-de receber o convite.

Um beijinho grande para ti (e outro para a Bat).

Luís Mendes disse...

envolvente. soturno.

belo texto*

aquilária disse...

morgana, se eu pudesse disciplinar os eus que me habitam...
mas escondem-se, quase sempre, quando os chamo, ou surgem de surpresa, quando eu não quero que isso aconteça...

mas talvez tu fales de outra coisa: o amor que a cada instante recria não só aquele que ama como, também, aquele que é amado.

um abraço.

fairy_morgaine disse...

belíssimo minha fata... fico sem palavras.
conquistas-me o silêncio

Lord of Erewhon disse...

Acho que tens que comer... e voltar a escrever. N'O Bar também.

Beijinhos.

Fata Morgana disse...

Madrugada,

um pouco... :)
Obrigada*

________________________

Aquilária,

Não, não é bem isso...
Tenho quase sempre duas maneiras fundamentais de ver e sentir as coisas. Opostas. Radicalmente opostas. E vivo entre esses opostos - já dois astrólogos me "diagnosticaram" como geminiana... e não sou! Isso reflecte-se em tudo... faz com que eu seja quase duas. É complicado :)

Um beijo grande*

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Olá Morgaine!

O silêncio é o que mais gosto de conquistar, como, evidentemente, sabes.
Obrigada e um beijo.

PS. Tenho andado distante de tudo isto,mas tenho que lá ir ver-te e calar-me ;)

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Lord of Erewhon,

:)))))))) realmente, tenho de comer (esqueço-me mesmo, imensas vezes, depois noto que estou absolutamente faminta!)

Estive meeeesmo para publicar no Bar... Não o fiz, mas ainda faço.

Dark kiss

Ana Beatriz Frusca disse...

Estamos sumidas, hein, minha fada!
Saudades!

Beijoos.*.*

Fata Morgana disse...

Olha eu mais lá em cima, Biazinha!!
Bolas, realmente, aqui tu não vês nada!!! :)))))))))

Tou a brincar, só postei depois de tu escreveres este comentário, eu é que não o tinha visto ;)

Beijo!