Porque abro os olhos e o que vejo é a roda que nunca pára, fecho-os para o deserto de gelo que tenho em mim; agasalho-me. Porque abro os ouvidos e o que ouço é o ruído branco que parece não ter fim, fecho-os para a canção que me canta a alma desde criança; embalo-me. Porque abro a voz e ela não soa no vazio desoxigenado, fecho-a para entoar sozinha a tal canção, minha, de sempre - "Dorme, menina triste/ Não te lembres de acordar/ Que toda a vida consiste/ No eterno desenganar". Afundo-me.
O poço é dentro e senti-lo é muito mais forte do que vê-lo. Eu não tenho vertigens, gosto da profundidade, atrai-me o que se oculta onde não chega a luz. O meu olhar é rasgado, como de cega, e não preciso da luz.
São tão poucas as coisas que, sob a luminosidade clara dos dias enormes, me prendem o olhar. Eu fujo-lhes, como das palavras. Essas trazem espinhos e medos como nenhuma escuridão. Por isso também não ouço, também me calo, sim, passo por arredia, por vazia ou por antipática. Porém, só queria um silêncio partilhado à beira do abismo.
E gosto de muita gente, oh gosto de demasiadas pessoas, mas quase todas lançam pedras para tentar descobrir quão fundo é o poço, e dói tanto a curiosidade com que as vão atirando, cada vez maiores, como se não fosse a mim. Talvez não saibam que magoa...
Sou muito mais funda do que saliente.
Por vezes, durante o sono, sinto que vou muito longe, quase como se chegasse, e há alguém que me recebe. O meu Anjo, talvez... É pura delícia, mas volto sempre com escassos fragmentos de memória da experiência.
E não conheço muitos dos monstros que hão-de aparecer onde nunca ainda cheguei.
É por tudo isto que tenho andado calada.
© Fata Morgana
Também publicado n'O Bar do Ossian
O poço é dentro e senti-lo é muito mais forte do que vê-lo. Eu não tenho vertigens, gosto da profundidade, atrai-me o que se oculta onde não chega a luz. O meu olhar é rasgado, como de cega, e não preciso da luz.
São tão poucas as coisas que, sob a luminosidade clara dos dias enormes, me prendem o olhar. Eu fujo-lhes, como das palavras. Essas trazem espinhos e medos como nenhuma escuridão. Por isso também não ouço, também me calo, sim, passo por arredia, por vazia ou por antipática. Porém, só queria um silêncio partilhado à beira do abismo.
E gosto de muita gente, oh gosto de demasiadas pessoas, mas quase todas lançam pedras para tentar descobrir quão fundo é o poço, e dói tanto a curiosidade com que as vão atirando, cada vez maiores, como se não fosse a mim. Talvez não saibam que magoa...
Sou muito mais funda do que saliente.
Por vezes, durante o sono, sinto que vou muito longe, quase como se chegasse, e há alguém que me recebe. O meu Anjo, talvez... É pura delícia, mas volto sempre com escassos fragmentos de memória da experiência.
E não conheço muitos dos monstros que hão-de aparecer onde nunca ainda cheguei.
É por tudo isto que tenho andado calada.
© Fata Morgana
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13 comentários:
Cá estou Fada :)
Só mesmo para dizer que esta imagem diz tanto!!! Tenho esta e uma outra que já publiquei no meu blog, como sabes. Na verdade, nem precisava de ter escrito nada a acompanhá-la... Visto-a e sinto-me despida. Um pouco como tu fazes aqui, neste texto...
Kisss...
Olá Witch
Tenho andado muito pouco pelos blogues... não vi que tens esta imagem no teu. Mas não me admiro nada por ambas termos gostado dela. Diz muito, conforme os olhares :)
Tenho de ir lá ver, porque não sei a respectiva autoria e, caso a tenhas, aproveito para a identificar em condições!
Este é um texto nu, sim.
Beijo grande*
" Nós somos um edifício construído por fora com toda a terra e iluminado, por dentro, com todas as estrelas. E nele, vive silencioso e prisioneiro, o fantasma do seu arquitecto."
TPascoaes
Tanto tempo que as palavras são pedras, no fundo de um rio subterrâneo dentro de nós.
pois. my point exactly.
beijos, muitos.
0.05,
Eu estou quase sempre no rio subterrâneo. Na tua "visão", as pedras que piso (quando tenho pé), então, palavras. Algumas são suaves, outras magoam.
*
____________________________
Maria,
E dá para ser diferente? Eu, não posso.
Beijos e saudades.
«É por tudo isto que tenho andado calada.»
É por isso que também não tenho perguntado. Beijinho.
(Mas fala quando quiseres, tá?)
Katrina,
e eu quero quase sempre, mas falar é um hábito que se perde... tão facilmente! A voz é rouca e pouco ágil quando não a usamos.
Mas eu contigo falo, vais ver :)
Um beijinho grande.
:
:
:
um abraço, morgana.
Aquilária,
desceste para me dar um abraço, sem te importares que fosse íngreme... :)
Está retribuidíssimo!*
http://blogameisto.blogspot.com/2006/12/s.html
Como compreendo-te.
Gostei de passar por cá...
Querida Fata
Numa época de ressurreição, sinto-te a passear pelo Jardim das Oliveiras... A tua imagem ficou apreensiva... estás triste ou como se estivesses... algo te falta, eu sei...
Um beijo
Daniel
Xico,
obrigada :)
_________________________
Daniel,
escolhi-a de propósito. Gosto de ter sempre uma fotografia recente e verdadeira.
Passeio pelo Jardim das Oliveiras... gostei dessa imagem :)
Um beijinho e uma Santa Páscoa para ti!
é maravilhoso renascer com o Sol na floresta, até as pedras florescem
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