A carta, escrevi-a de rajada. Foi fácil, bastou romper de leve a ponta dos dedos e deixar escorrer o sangue para o papel. Ficou lá tudo. Fiquei lá eu, inteira. Outras palavras que tivesse pensado não seriam tão autênticas; era exactamente aquilo que eu sentia, e que queria tanto dizer.
Reli-a. Chorei. Era tão eu, amortalhada numa folha de papel! Eu mesma, tão pequenina e tão valente, tão desprotegida e tão cheia de força. Parecia fácil escrever assim a verdade crua, estirada num fundo branco, pensei, enquanto metia as pontas dos dedos na boca, sentindo o sabor do sangue que o coração bombeara pelo meu corpo, para ir morrer ali, com a mesmíssima sinceridade com que, dentro de mim, correra cheio de sobressaltos. Como as lágrimas que não paravam de cair sobre as palavras traçadas a púrpura, que deviam secar, e elas não deixavam. A folha parecia-se cada vez mais com um desenho esquisito, de nuvens vermelhas e palavras que se desvaneciam. Informes se tornavam todas as mensagens importantes. Agora lembravam as vozes dos anjos que nos chegam como sons indecifráveis, quando na origem são tão nítidas!
Dobrei o papel e meti-o num envelope, onde escrevi o nome do destinatário. Talvez ele, mesmo assim, pudesse compreender. Prouvera a Deus que sim, pois estas verdades de sangue que já se exauriu, não poderei tornar a dizer. Esvaída, restam-me os gestos simples. Lamber o selo - de adocicada cola - e meter a carta na ranhura negra do marco do correio, que a engoliu.
Poisado no meu ombro, o corvo que não quis ser mensageiro segreda-me coisas suaves ao ouvido. Faz-me sorrir baixinho.
© Fata Morgana
Reli-a. Chorei. Era tão eu, amortalhada numa folha de papel! Eu mesma, tão pequenina e tão valente, tão desprotegida e tão cheia de força. Parecia fácil escrever assim a verdade crua, estirada num fundo branco, pensei, enquanto metia as pontas dos dedos na boca, sentindo o sabor do sangue que o coração bombeara pelo meu corpo, para ir morrer ali, com a mesmíssima sinceridade com que, dentro de mim, correra cheio de sobressaltos. Como as lágrimas que não paravam de cair sobre as palavras traçadas a púrpura, que deviam secar, e elas não deixavam. A folha parecia-se cada vez mais com um desenho esquisito, de nuvens vermelhas e palavras que se desvaneciam. Informes se tornavam todas as mensagens importantes. Agora lembravam as vozes dos anjos que nos chegam como sons indecifráveis, quando na origem são tão nítidas!
Dobrei o papel e meti-o num envelope, onde escrevi o nome do destinatário. Talvez ele, mesmo assim, pudesse compreender. Prouvera a Deus que sim, pois estas verdades de sangue que já se exauriu, não poderei tornar a dizer. Esvaída, restam-me os gestos simples. Lamber o selo - de adocicada cola - e meter a carta na ranhura negra do marco do correio, que a engoliu.
Poisado no meu ombro, o corvo que não quis ser mensageiro segreda-me coisas suaves ao ouvido. Faz-me sorrir baixinho.
© Fata Morgana
22 comentários:
Morgana,
És uma exímia escritora dos mundos de dentro, das sensações, mas em todas elas há uma urgência e um sentido do inesperado que nos transporta.
Um fatalismo, uma mescla de indignação e aceitação. Uma marca tua... talvez.
Beijo,
Gotik Raal
Consegues descrever tão bem as sensações...se eu tentasse escrever descrevendo tais sensações, creio que nao conseguiria. Esse registro me tocou tanto...já escrevi diversas coisas que me arrancaram lágrimas, e todas aquelas verdades ficaram entaladas em mim até o momento da conclusão do texto que na maior parte das vezes não chega ao destinatário.
Beijos.
Gotik,
a mim só interessam os mundos de dentro. Os sentimentos, sobretudo. Cá fora há a natureza linda, mas o mundo como hoje é vivido é anti-natura. Desabrido e cheio de coisas horríveis. Não dá muita vontade de escrever "o Homem em situação" no sentido actuante, prefiro de longe explorar o poço em mim; o poço em cada um.
Indignação e aceitação. Bolas, acertaste em cheio.
Tu és esquisito!
Dark kiss
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Bat!!!! :)
cada um tem seu talento. Se eu tentasse escrever "à tua moda" também não sairia grande coisa.
Sabes, eu escrevo montes de cartas que me fazem chorar e só muito raramente as mando. Mas as coisas não ficam "entaladas" em mim, envenenam-me. Escrevê-las é uma espécie de antídoto - para ti é um "desentalante" :) - mas há casos em que não funciona.
Então, tenho de resolver de outra forma. Falo, digo o que tiver a dizer, seja o que for e a quem for. Falo baixíssimo se estiver muito zangada; se estiver triste choro, para variar (e como detesto não conseguir conter-me!!!), e sai tudo um bocado mais descontrolado e esborratado - o rimmel, o eyeliner :)))
Dark kiss
Corajoso, quem assim se passa, inteiro, para uma folha de papel. Mais ainda quem faz chegar as palavras de sangue aos destinatários. Creio que é preciso coragem. Admiro-a.
beijo*
PS: julgo que escreves a sangue quase sempre. É a tinta que usas. Sente-se.
Uma mulher em estado de sitio,tu.
(viver sempre assim cansa um pouco,mas mundos interiores vastos e profundos,não é qualquer um que suporta)
Um beijo
Querida Fata
Atreve-te a escrever um livro todo assim... serás grande, pequenina :)
Um beijo
Daniel
"O poço em cada um", isso suponho que temos em comum - se me perdoas a apropriação.
"Esquisito" também. Mas tenho conseguido manter-me longe das fogueiras...
Gotik Raal
Mariazinha,
mas se não for assim, não vale a pena. As primeiras coisas são sempre as que doem, se não fosse absoluta com essas, viveria a meio gás.
Importa dizer que as coisas boas - eu diria que as melhores! - também doem, claro, senão não valem a pena.
Obrigada pelas tuas palavras :)*
Dark kiss
PS. É a tinta que uso, pois.
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Vertigo,
:)))))
pois sou! :(
É verdade que pesa, mas também nos torna leves. Crianças muito velhas.
Beijo grande*
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Daniel,
atrevo sim! :)
Um beijo
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Gotik,
não é uma apropriação, não sinto isso como pertença minha. São as únicas palavras que traduzem como deve ser. É como chamar noite à noite e sol ao sol.
Costumo dizer que "tenho em mim um poço sem fundo, atiras uma pedra e ela sai do mundo" - esta frase é que não podes usar :P
Esquisito, pois.
Querida Fata
Então é através de ti que se poderão fazer viagens inimagináveis, andando mais depressa que a luz... (a propóstito da tua frase com direitos de autora).
Um beijo
Daniel
P.S. Se ousas, então serei dos primeiros a exigir que cumpras: queremos-te em livro!
As palavras correm suaves, lindas, soberbas...e quase sempre nos reconhecemos lá, como em um espelho de aço escovado, onde, às vezes, acontece de não nos vermos...
abraços....
a.h.
:)))
Habitam-te as palavras...
Escreves com a carne das palavras que chegam, ofegantes e vermelhas...
As escrevermos a sangue lavamos a alma, ficamos nus, somos realmente nós....
Adoro a forma como nos envolves a explorar os teus poços profundos... :)
O meu gato acompanha o teu corvo... Faz-me sorrir...
Blood Kisses
Dedos a percorrer a nuca do corvo :)
o Verbo é Poder,
a Fala.
As palavras verdadeiras regam almas, o silêncio seca
as mentiras geram monstros.
*
Por muito que não me agrade quebrar este número (o 13), vale a pena.
Consegues dançar uma rígida dança magnífica com as palavras.
Voltarei sempre.
Bjs
Às vezes venho aqui só para fechar um bocado os olhos e ficar a ouvir e arrepiar.
(e curioso que as letras aqui abaixo que me aparecem para preencher para publicar o comentário são "tremi")
By the way... no meu ombro pousa um mocho orelhudo. E sabe todas as minhas histórias...
Cheers,
*
Também escrevo de rajada. E choro. Mas as cartas quase sempre ficam comigo.
Beijinhos*
(Gosto tanto de te ler.)
:)
Morgana:
Vc sumiu!
Saudades...:(
Bat Kiss.
Fata:
Estamos com saudades!
Beijos.
Sim, estamos com muitas saudades da nossa fada corva!
Blood Kisses
Cautela com o sangue no papel... ;)
Dark kiss.
Já estão todos com saudades de tu...não é justo sumires desse jeito...:)
Dark Kiss.
Agradeço a todos os que por aqui têm passado, especialmente os que deixaram rasto, mas também os que silenciosamente comigo tenham sentido as sombras.
Fata Morgana
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