A velha olhou à sua volta e viu que estava tudo fora do seu lugar, como ela gostava. Depois de tantos anos a pôr tudo nos devidos sítios, tinha as contas saldadas, podia dar-se a todos os luxos da arrumação bizarra que muito melhor lhe servia.
Respirou fundo, puxou pelo nariz enorme, a soltar o espirro teimoso que não queria sair - ah... que alívio! - e começou a dançar, primeiro devagarinho, a certificar-se de que os passos estavam todos errados, depois mais depressa, até parecer um pião. Rodopiava, rodopiava, causando uma movimentação cada vez maior no ar, quase um tornado. As coisas começaram a voar à volta da velha e ela ria-se, a saia comprida de roda a enfunar-se cada vez mais e mais, até que a fez voar a ela, tal e qual como um balão.
Quando as telhas se soltaram e o céu ficou aberto, ela começou a subir, causando espanto e um enorme alarido - de facto a cidade parou e todos ficaram a vê-la rodopiar por ares e ventos, com telhas, cafeteiras, compassos, fotografias, jarras, ovos, gatos, peças de roupa, livros, frigideiras, candeeiros, chapéus, colheres de pau e muitas outras coisas à volta dela, num turbilhão.
Ninguém a viu descer. A verdade é que nunca mais se soube dela. O único vestígio foi o despertador que caiu, com uma violência de meteorito, três dias depois daquela ascensão peculiar, e continuava a dar horas muito certas. Tê-lo-ia ela devolvido?
Que velha esquisita!
© Fata Morgana
Respirou fundo, puxou pelo nariz enorme, a soltar o espirro teimoso que não queria sair - ah... que alívio! - e começou a dançar, primeiro devagarinho, a certificar-se de que os passos estavam todos errados, depois mais depressa, até parecer um pião. Rodopiava, rodopiava, causando uma movimentação cada vez maior no ar, quase um tornado. As coisas começaram a voar à volta da velha e ela ria-se, a saia comprida de roda a enfunar-se cada vez mais e mais, até que a fez voar a ela, tal e qual como um balão.
Quando as telhas se soltaram e o céu ficou aberto, ela começou a subir, causando espanto e um enorme alarido - de facto a cidade parou e todos ficaram a vê-la rodopiar por ares e ventos, com telhas, cafeteiras, compassos, fotografias, jarras, ovos, gatos, peças de roupa, livros, frigideiras, candeeiros, chapéus, colheres de pau e muitas outras coisas à volta dela, num turbilhão.
Ninguém a viu descer. A verdade é que nunca mais se soube dela. O único vestígio foi o despertador que caiu, com uma violência de meteorito, três dias depois daquela ascensão peculiar, e continuava a dar horas muito certas. Tê-lo-ia ela devolvido?
Que velha esquisita!
© Fata Morgana
13 comentários:
Que velha esquisita e que narrativa fantástica! :)
É uma cena bem cinematográfica e surreal.
Sinto-me um pouco como a protagonista: quando tudo está muito certinho, sinto necessidade de bagunçar e fico com a sensação de transgressora, afinal é uma convenção ter tudo em seus devidos lugares...mas o tempo cronológico está sempre alheio a tudo ... é uma realidade!Se perdemos a noção do tempo, perdemos também as referências.
Adorei imensamente essa parábola!
Beijos gordos do além-mar.*
Eu já vi uma cena semelhante a esta num desenho animado: tudo a levantar um enorme alarido dentro de um ciclope.
Devolver o despertador é devolver a objetividade. Passei há um tempo atrás por uma experiência interessante: eu e minha mãe fomos passar 10 dias num hotel-fazenda em Poços de Caldas. Combinamos entre nós de não levar relógio de pulso, não comprar jornal e não ver noticiário já que nosso dia a dia é uma rotina previsível: acorda-se tal hora, toma-se banho, café e cada uma vai seguir normalmente suas atividades. Enfim, estamos sempre atinadas com a hora. Ao seguir a experiência proposta ficamos bem confusas, pois perdemos a noção dos dias, horas e aquilo nos deu certa agonia. Em dado momento tivemos que buscar a referência do tempo externo. Há uma dialética entre tempo interno e externo.
Eu adorei essa sua narrativa. Fez-me pensar bastante.
Bat Kiss.
"O acaso é uma palavra sem sentido. Nada pode existir sem causa."
"O mundo me intriga. Não posso imaginar que este relógio exista e não haja relojoeiro."(Voltaire)
Estava voando por estas terras e resolvi ler teu texto. Lembrei-me destas duas frases.
Beijos.
Ahhhhh........ *sorriso enigmático*
Eu adoro sair do normal e fazer algo diferente.... Tudo o que é demasiado "certinho", para mim é aborrecido, lol Adorei a parábola, e tenho a certeza que a velha devolveu o relógio, porque as horas certas não se enquadravam com o turbilhão de coisas fora do lugar..... ;)
Blood Kisses
Biazinha,
sim, é um texto muito visual, muito surreal. Mas verdadeiro. :))))
Ah não! Como isso é possível não posso dizer!!!
Transformei-o em parábola e pronto, assim vai ficar.
Beijos gordos deste lado do mar***
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Bat_trash
precisamente: devolver o despertador é devolver a objectividade. Há casos em que ela só atrapalha.
Essa experiência que fizeste com a tua mãe deve ter sido interessante. Eu não uso relógio, sabes? E estou tão habituada, que só consulto o do telefone se tiver um compromisso inesperado. Para a vida rotineira do dia-a-dia já não preciso. E nas horas livres e fins-de-semana não quero! :)
Bat kiss
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Akasha,
Voltaire deixa-me sempre assim: :/
Eu adoro acasos (a ponto de fingir que acredito neles, o que nem sempre acontece); e os meus relógios favoritos são os de sol. De facto, à noite avariam-se sempre, mas relojoeiro que os cuide é que népias!
E vem ele e - catrapuz! - quer estragar-me tudo. :)
Beijos e bem-vinda.
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Blood Tears,
e tens muita razão. A devolução foi um gesto sábio...
Blood kiss
Olá ;)
tenho andado um pouco ausente...as visitas que faço são sempre em speed, mas agora já dá para parar mais um pouco...
obrigado pela visita no Neo,
o Experimental só tem códigos... é um local de experiências para mais tarde publicar no Neo- Artes...os robots do blogger bloquearam-me o Neo – Artes porque acham que sou um spam robot e então sempre que faço um post tenho que fazer a verificação das letras como nas caixas de comentários, só que estas estão umas em cima das outras tornando-se muito difícil de identificar.
Tudo isto porque utilizo muitos códigos, já enviei 5 e-mails e nada, por essa razão criei o Experimental…é igual ao Neo – Artes…caso eles bloqueiem de vez não perco tudo o que criei...
bjs.
Ruela,
que bom rever-te por aqui, obrigada por teres vindo tão prontamente :)
Ok, eu pensei que o Experimental fosse um blog diferente e queria entrar! :P
Beijo*
estavamos os dois no mesmo sítio a comentar ao mesmo tempo ;)
gostei do teu texto e achei-o bastante interessante.
Dark kiss.
Ruela,
que boa sintonia :)
A propósito dos robots do blogger... Eu já escrevi uns contos completamente loucos sobre robots, em que uma "comissão" me considera "robofóbica" e me condena por esse "delito" :)
Tem cuidado com eles, trata-os bem, que são muito traiçoeiros!!!! Eu fui alvo da mais doida perseguição.... mas lá me livrei! :))
Um beijo*
(Não sei se viste, mas já tens cá um assento para ficares a ler confortavelmente. Tenho-te seguido na NA e não quero perder-te daqui!)*
Obrigado ;)
Duas vezes no mesmo dia, ao mesmo tempo ;)
LOL!
A exposição é em Lourosa, se clicares em older posts no fundo da página encontras o cartaz com os horários.
Boa! Obrigada :)
A vida não está simples por aqui... Mas talvez possa lá ir entre 6ª e Domingo. Tenho imenso interesse.
*
Uma história deliciosa!!!
Kissss...
Obrigada, Witch!
Sabes, entre outras coisas, partilhamos o Artaud! :)
Beijo*
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