Imagem de um teste do Quizilla
A castelã solitária, por méritos do seu cavaleiro preferido, vira-se obrigada a organizar um grande jantar de cerimónia. Não gostava de ver o castelo cheio de gente, preferia o eco dos seus passos nas paredes cujas pedras lhe devolviam amores e coisas suas, ou conversar com o garboso cavaleiro, com palavras serenas, entremeadas de silêncios cheios de sortilégios...
Mas, por ele, esmerou-se. Vestiu-se de anfitriã, escolheu a melhor baixela e os copos e talheres mais bonitos, bem como a toalha e os guardanapos mais delicados.
O jantar estava uma delícia. Depois de uma saborosa sopa de nabiças, o javali assado parecia uma iguaria dos deuses. O vinho, aromático, era ideal para fazer escorrer algo de mágico e subtil pelas gargantas dos convidados. Tudo estava certo para produzir um conforto que, apesar de tantos cuidados, não havia.
O que havia era um mal-estar incompreensível. Os presentes entreolhavam-se, uns com regozijo, outros com rancor. As conversas tornavam-se paradas, como se de repente as palavras estivessem a afundar-se num pântano invisível e só os ditos irónicos e despropositados se mantinham à superfície.
Alguns convidados pareciam estupidamente contentes com uma coisa qualquer invisível que enfurecia os outros. Depois instalava-se um silêncio carregado e reinava o tinir dos talheres sob muitas trocas de olhares divertidos ou hostis.
A castelã sabia que tinha feito tudo certo e estava um pouco distraída a saborear o jantar. Sabia que os convidados não estavam ali por causa dela e não esperavam que participasse demasiado. Pensou, vagamente, que eram um pouco estranhos... mas achava normal ser-se estranho. Ela também era estranha.
De repente, durante o gesto de levar aos lábios o copo de vinho, viu claramente através das pestanas baixas, e percebeu que não se tratava de estranheza, mas de outra coisa qualquer, violenta e negativa. Perturbada, passeou o olhar pelas pessoas à volta da mesa, enquanto, com a sua mão esquerda, pousava o copo. O seu vizinho, por sua vez, olhava-a com uma expressão que parecia mesmo de ressentimento. E ela de repente percebeu que se enganara.
- Oh, desculpe, eu usei o seu copo... Eu sou canhota, pus a mesa direita por vossa causa, mas...
- Canhota? - gritaram todos em uníssono.
Ela sentiu no ar um reboliço de vibrações contraditórias cruzando-se, tornando ufanos os que antes estavam zangados e raivosamente desapontados os que se tinham mostrado contentes.
- Sim, canhota - confirmou sem qualquer pejo, enquanto notava que sentara os convidados seguindo a devida hierarquia, mas ao contrário. O que deveria estar à sua direita estava à sua esquerda, e assim sucessivamente. Divertida, acrescentou: a minha mão principal é a esquerda.
Depois desta revelação, todos olharam a castelã e o cavaleiro festejado. Fizeram contas de cabeça, descobrindo-se sentados exactamente nos lugares que lhes pertenciam, uma vez que a dona do castelo era canhota.
O resto do jantar foi uma conversa sinfónica, de temas maiores e triunfantes a modular aos relativos menores, carregados de amargos venenos.
Ela também conversou bastante mais, uma melodia que ia improvisando e ao mesmo tempo vinha de muito fundo dentro de si. Na realidade nem sequer estava ali, tinha recolhido ao seu inaparente estrabismo. Felizmente também era estrábica!
© Fata Morgana
Mas, por ele, esmerou-se. Vestiu-se de anfitriã, escolheu a melhor baixela e os copos e talheres mais bonitos, bem como a toalha e os guardanapos mais delicados.
O jantar estava uma delícia. Depois de uma saborosa sopa de nabiças, o javali assado parecia uma iguaria dos deuses. O vinho, aromático, era ideal para fazer escorrer algo de mágico e subtil pelas gargantas dos convidados. Tudo estava certo para produzir um conforto que, apesar de tantos cuidados, não havia.
O que havia era um mal-estar incompreensível. Os presentes entreolhavam-se, uns com regozijo, outros com rancor. As conversas tornavam-se paradas, como se de repente as palavras estivessem a afundar-se num pântano invisível e só os ditos irónicos e despropositados se mantinham à superfície.
Alguns convidados pareciam estupidamente contentes com uma coisa qualquer invisível que enfurecia os outros. Depois instalava-se um silêncio carregado e reinava o tinir dos talheres sob muitas trocas de olhares divertidos ou hostis.
A castelã sabia que tinha feito tudo certo e estava um pouco distraída a saborear o jantar. Sabia que os convidados não estavam ali por causa dela e não esperavam que participasse demasiado. Pensou, vagamente, que eram um pouco estranhos... mas achava normal ser-se estranho. Ela também era estranha.
De repente, durante o gesto de levar aos lábios o copo de vinho, viu claramente através das pestanas baixas, e percebeu que não se tratava de estranheza, mas de outra coisa qualquer, violenta e negativa. Perturbada, passeou o olhar pelas pessoas à volta da mesa, enquanto, com a sua mão esquerda, pousava o copo. O seu vizinho, por sua vez, olhava-a com uma expressão que parecia mesmo de ressentimento. E ela de repente percebeu que se enganara.
- Oh, desculpe, eu usei o seu copo... Eu sou canhota, pus a mesa direita por vossa causa, mas...
- Canhota? - gritaram todos em uníssono.
Ela sentiu no ar um reboliço de vibrações contraditórias cruzando-se, tornando ufanos os que antes estavam zangados e raivosamente desapontados os que se tinham mostrado contentes.
- Sim, canhota - confirmou sem qualquer pejo, enquanto notava que sentara os convidados seguindo a devida hierarquia, mas ao contrário. O que deveria estar à sua direita estava à sua esquerda, e assim sucessivamente. Divertida, acrescentou: a minha mão principal é a esquerda.
Depois desta revelação, todos olharam a castelã e o cavaleiro festejado. Fizeram contas de cabeça, descobrindo-se sentados exactamente nos lugares que lhes pertenciam, uma vez que a dona do castelo era canhota.
O resto do jantar foi uma conversa sinfónica, de temas maiores e triunfantes a modular aos relativos menores, carregados de amargos venenos.
Ela também conversou bastante mais, uma melodia que ia improvisando e ao mesmo tempo vinha de muito fundo dentro de si. Na realidade nem sequer estava ali, tinha recolhido ao seu inaparente estrabismo. Felizmente também era estrábica!
© Fata Morgana
25 comentários:
... o 'estrabismo inaparente' é uma excelente fuga em suspensos momentos em que estamos, mas não ficamos...
É sempre bom lê-la!
Até sempre!
... também sofro dessa 'direita' vista em contrário plano!
Morgana,
Se bem te entendo, uma muito boa metáfora da comunicação, dos tempos futuros, da desinformação, das pequenas velhacarias e em que, sobretudo, nesse espelho fosco, o julgamento precede o facto.
De regresso ao Castelo Sombrio, deixo um beijo.
Gotik Raal
Fragmentos Culturais,
sim, faz-me um jeitão... Ainda por cima tantas vezes tenho estado, sem ficar, por coisas da vida.
Bem vinda e obrigada!
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Gotik,
oh, e estes tempos futuros são tão completamente insuportáveis!!! :)
Tu, que também moras num castelo - a Catedral! - podes compreender.
Um beijo*
PS. Estavas tu aqui e eu lá, onde te deixei rosas, num grande cesto de vime.
Ou como tudo é uma questão de perspectiva...
:)
Adoro as imagens que as tuas palavras me fazem surgir à frente dos olhos.
beijo*
Isto pouco intectual, mas deste-me fome... dupla... :)
Dark kiss.
Ahah,aí é que a festa deveria ter começado ;)
No final do texto,lembrei-me desta.
Um beijo grande,minha querida*
Querida Fata
E não é ficção :) pois acredito que fazes, ou farias mesmo assim, um evento desta magnitude, mesmo com poucos "amigos", enquanto a mente, "tremente" e "deliquente" se passearia pelas ameias, olhando ao longe os recortes dos cavaleiros na paisagem...
Um beijo
Daniel
Mariazinha,
e eu adoro quando as minhas palavras despertam imagens que são "as nossas imagens" :)
Beijo*
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Klatuu,
a castelã não é intelectual. A inteligência emocional reina por ali...
Vai um javali assado? :)
Dark kiss
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Vertigo,
e se calhar começou, ela é que não estava lá :))
... e também fala sozinha!
Obrigada e um beijo grande para ti.
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Daniel,
fico sempre admirada com as coisas que dizes! :))
Um beijo
O corpo se vale também de conotações.As minorias têm fardos aparentes e privilégios sutis.
Sou canhota e estou ficando estrábica de fome.:)
Javali é bom?
Bat Kiss.
Também estou vesga de fome!
:)
Beijos.
PS: comentei o teu texto do Bar.
PPS: Tenho entrado menos na blogosfera, agora eu só entro pra postar e comentar os textos dos amigos.Estou na reta final do ano letivo
Tive um sonho parecido com essa história, há muitos anos, que se repetiu depois. O que quererá dizer?
Hola... primera vez en tu pagina... no te preocupes, tengo un traductor en el trabajo... podre entender lo que tu escribe...
Bat,
é isso mesmo, morceguinha inteligente :)
Javali é bom, sim. Mas eu fico com pena dos bichinhos porque gosto deles :(
Beijos*
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Biazinha,
boa sorte para os exames, então -embora tenha a certeza de que estás preparadíssima, mas a sorte ajuda sempre.
Eu ontem fui ao Bar só para te responder. Ainda não voltei para te ler, mas não falho.
Beijo grande e saudades.
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Anónimo,
do teu sonho só tu poderás saber o significado.
Mas é engraçado, porque esta história é uma visão, uma espécie de sonho que tive acordada. Mas sei perfeitamente interpretar (o que nem sempre acontece com os sonhos!)
Gittana,
Hola. Gracias por tu visita y comentario.
A ironia da diferença desnuda o cavaleiro :)
Magnetikiss;)
Tá muito sumida, hein, minha fadona!
:)
O que me vale, aqui, é a ironia :)
E o cavaleiro, que fica imperturbável com o estrabismo, o canho, e outras idiossincrasias.
Dark kiss
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Bat,
ando sumida sim! Ontem e hoje não vi blogs. Mas fui ao Bar, onde te falei :)
Bat kiss*
A miúda na foto é a Vampirella... nada de assados, só bebe sangue... ;)
Dark kiss.
Lord of Erewhon,
pois, e os convidados podem ter sido um excelente "assado" para aqueles dentes afiados... ;)
Dark kiss
Tu bem pareces a moça da imagem desse post....até o corte de cabelo.:)
Beijos.
Akasha,
foi por isso que escolhi esta! :)))
Bruxinha lindaa, tu.
Beijos*
Ah!
Mas a minha jantarada não era nada disto. Até era tudo bem festivo e bem disposto, nada fora do lugar, todas as pessoas certas.
Aqui não, aqui há um desconforto muito grande, e constrangimento. Mas também não há nada fora do lugar: sou canhota ;)
Também sou canhota...:)
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